Quem cuida dos cuidadores?
Ideia: criar um robô para me ajudar a ser uma pessoa menos desorganizada. E depois criar outro robô para ajudar meu robô a se organizar também.
Está aí o grande problema de tentar pegar carona e publicar algo abordando o assunto do momento no Brasil: você demora mais de uma semana para escrever alguma coisa, e nesse meio tempo acontecem mais três ou quatro catástrofes que mudam completamente o cenário, o assunto e o humor da galera. Mas, vamos que vamos.
Nesse insólito novembro de 2023, as mentes maquiavélicas do INEP resolveram anunciar um tema de redação para os jovens a partir da seguinte premissa: desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil. Aqui, nesse preâmbulo, é necessário desde já esclarecer que não estou abordando esse tema apenas porque supostamente está “na moda” comentar a redação do ENEM na internet. É claro que as ondulatórias do alvoroço são detectadas nas redes sociais, mas eu preciso ser um pouco mais sincero. Para nós, pessoas cronicamente online, é muito difícil encontrar assuntos legais para comentar a cada 15 dias em um blog. Então, quando alguma instituição governamental lança um tema de redação, a gente gosta de se sentir incluído, dá vontade de escrever também. A diferença é que a gente não faz isso pra ganhar nota. A gente ganha outras coisas1.
Por sorte, esse tema me fez relembrar de uma ideia engavetada. Algo sobre o qual eu já elaborei uma meia dúzia de palavras, mas nunca publiquei. Portanto, vou soltando aqui logo o que eu chamo de corolário da desorganização moderna. Em resumo, o que eu gostaria de compartilhar, nas linhas a seguir, é uma ideia simples e que talvez até soe repetitiva, mas que, quem sabe, eu consiga elaborar de forma a causar desconforto e gerar engajamento para meu blog: ser uma desorganizado não é um traço de personalidade ou característica pessoal. Ser uma pessoa desorganizada é um privilégio. Leiam e depois me digam nos comentários se faz sentido ou não.
Há algum tempo, topei com o livro First Steps, escrito por um professor do departamento de antropologia da universidade de Dartmouth chamado Jeremy DeSilva. A tese da monografia é deveras interessante: trata-se de uma extensa investigação sobre o ato de caminhar. DeSilva dedica longos capítulos do seu livro para explicar, em termos evolucionistas, por que os seres humanos se tornaram bípedes e como isso nos ajudou a sobreviver.
De fato, praticamente três quartos do livro do paleoantropólogo são dedicados a reportar e discutir pesquisas sobre a história do corpo humano e o papel da caminhada nas vidas dos nossos ancestrais. O autor traz argumentos para defender o quanto caminhar é inseparável da nossa identidade — de fato, nos tornamos tão bons e eficientes em caminhar sobre duas patas que pouquíssimas calorias são gastas no processo. Podemos caminhar por horas se quisermos. Além disso, caminhar ativa os músculos, que começam a produzir miocina, uma pequena molécula proteica que ajuda na manutenção do sistema circulatório e tem efeitos surpreendentes sobre a memória, descobertos recentemente. Ou seja, DeSilva não tarda a encontrar conexões entre caminhar e ser uma pessoa saudável e cognitivamente ativa. Um capítulo específico do livro chama a minha atenção, nesse aspecto.
Após delinear todo o esquema evolutivo do bipedismo humano, DeSilva resolve mencionar algumas personalidades históricas que mantinham registros do hábito da caminhada diária. A lista é composta por pensadores e artistas como Charles Darwin, William Wordsworth, Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant, Beethoven, Charles Dickens e, mais recentemente, Steve Jobs. Outras figuras famosas compõem o rol, e DeSilva logo emenda uma observação pertinente: o leitor deve ter percebido que esse elenco de caminhantes traz somente nomes masculinos. Ele justifica: historicamente, caminhar por aí sempre foi mais perigoso para mulheres e outros grupos minoritários. Por isso, excluindo notáveis exceções como Virginia Woolf e Robyn Davidson, há uma lacuna de registros sobre caminhantes femininas. Sem dedicar mais palavras para essa pedra no caminho, o autor prossegue para o próximo assunto da tese e a moral da história fica por isso mesmo. Caminhar faz bem para o cérebro — pelo menos, para o masculino.
Respeitando os achados e desdobramentos da pesquisa de Jeremy, começo a perceber algumas possibilidades de deixar um pouco mais densa a trama da história da caminhada. Na verdade, nem tanto em tom de crítica construtiva, mas mais como pura curiosidade mesmo, a pergunta que acabo me fazendo é: como esses caras tinham tanto tempo livre para ficar caminhando por aí?
Encarar a caminhada como um privilégio masculino não é uma novidade. No livro Wanderlust, a escritora norte-americana Rebecca Solnit dedica páginas mais aprofundadas para essa dimensão da atividade muscular dos nossos membros inferiores. Nas palavras da própria, são três os pré-requisitos para adotar a caminhada como uma atividade de lazer: “a pessoa precisa ter tempo livre, um lugar para ir, e um corpo desimpedido por doenças ou restrições sociais”. É nesse último quesito que Solnit lança suas mais pertinentes observações: por exemplo, a ideia de que o mesmo ato de caminhar seja visto como exercício, passatempo ou simples transporte pelos homens, também torna-se uma performance para o olhar masculino quando executado por mulheres, cuja adesão às normas sociais impõe locais próprios para caminhar e até mesmo roupas que aguçam seus movimentos para padrões que agradam a esse olhar específico.
Solnit lança exemplos para delinear as diferenças do caminhar que emergem das questões de gênero, nos ajudando a compreender a longa trajetória do espaço público. Dos gregos antigos aos subúrbios modernos, o ir e vir a pé é retratado como parte do extenso aparato de controle sexual feminino. Considere o ato de caminhar sozinho, recreativamente. A dimensão simbólica desse ato, essa espécie de deslocamento contemplativo — o caminhar do flâneur ou as viagens errantes dos exploradores — revela-se como historicamente reservada aos homens. É algo perigoso de ser feito por uma mulher, que estaria mais segura em casa, cercada pelas paredes. Se caminhar tem um peso cultural tão evidente, e se tal ato é um privilégio masculino, às mulheres, portanto, “acaba sendo negada não apenas uma oportunidade de recreação, mas uma porção da sua própria humanidade”.
Retornemos, entretanto, para o primeiro dos três ingredientes da caminhada: o tempo livre parece ser o meu incômodo principal com a tese de DeSilva. Para uma pessoa decidir caminhar como recreação, ela precisa ter o poder de escolher esse hobby em vez de estar precisando fazer outras coisas. Embora as questões de controle social sejam amplamente abordadas por Solnit, podemos fazer um breve complemento ao problema da caminhada a partir do momento em que compreendemos que o tempo livre não é um tempo que existe fora das 24 horas que o planeta Terra leva para completar uma pirueta. O tempo livre é um produto direto do trabalho de cuidado feito pelas outras pessoas.
Seria divertido abraçar a tese de DeSilva sem questionamentos e começar a caminhar uma hora por dia para tentar ficar mais inteligente. Se eu resolvesse fazer isso, teria que escolher alguma coisa para sacrificar. Talvez deixar a louça suja acumular para lavar tudo no sábado, ou talvez parar de limpar meu banheiro e o banheiro da minha gata. Quem sabe eu poderia deixar de ter um blog também? Eu logo perceberia que as caminhadas poderiam até estar causando algumas reações eletroquímicas a mais pelo meu sistema nervoso, mas o preço disso seria perceber que minha vida pessoal está desmoronando ao meu redor. Já é difícil o suficiente manter um ritmo de exercícios físicos semanais. Já é um saco ter que ficar indo no supermercado, escolhendo legumes em vez de fazer coisas mais divertidas. Aliás, é difícil dedicar algum tempo para me divertir sem me sentir culpado por não estar trabalhando ou fazendo outras coisas mais úteis.
Tento não ser normativo nessas horas, mas sou levado a acreditar que pessoas que não precisam se preocupar com organização só o fazem porque já existe alguém organizando as coisas para elas. E por organizar eu quero dizer justamente fazer esse trabalho de cuidado, esse conjunto de manutenções cíclicas. Não é estranho pensar na organização pessoal como trabalho de cuidado se repararmos que todo CEO, executivo ou administrador do raio que o parta precisa contratar uma secretária para anotar telefonemas, agendar reuniões e barrar a entrada de pessoas desimportantes na sala.
Nesse ponto, lembro-me da divertida crítica que Heather Havrilesky escreveu para a Baffler sobre a série de livros dos Cinquenta Tons de Cinza. O que a autora sugere é uma leitura para além do aspecto erótico-romântico (legal) do texto. Ela observa a narrativa dos fatos como uma rápida ascensão da personagem principal para a classe aristocrática à qual o magnata por quem ela se apaixona pertence. Isso é sinalizado, evidentemente, pela percepção do quanto o trabalho de cuidado sai de suas mãos para os empregados: ela passa a ter um motorista, uma cozinheira — e, como não poderia deixar de ser, passa também a projetar desejos de controle sobre essas pessoas, tal e qual seu dominador o faz quando a leva para seu quartinho secreto.
Fica estranho pensar nessas celebridades do passado, nesses grandes pensadores, escritores, inventores, sem querer problematizar a origem desse tempo livre disponível para tanto pensamento. Eventualmente, aplicar uma simetria é válido: percebemos que estamos fazendo o mesmo. Pagar para alguém fazer seu serviço de cuidado é recorrente, até necessário se formos realistas e considerarmos a enorme quantidade de serviço de cuidado que precisa ser feito diariamente. Almoçar em um restaurante é, em certo nível, pagar por trabalho de cuidado. Alguém precisou selecionar ingredientes, preparar, servir, limpar. Ter uma babá ou pagar uma creche; um cuidador para o membro idoso da família. Eu, pelo menos, considero que a dimensão do trabalho de cuidado é um tanto elástica, ela abrange essas diversas manifestações da manutenção da vida diária, em menor ou maior grau.
Ao propor essa elasticidade, torna-se estranho imaginar que alguém ou algum grupo social escolhido tem um “talento natural” para o trabalho de cuidado, porque assumir isso pressupõe duas coisas: a primeira, e mais óbvia, é que o trabalho de cuidado é simples, menos complexo do que demais categorias laboriosas para essas pessoas e, segundo, que justamente por ser simples ele não precisa de tanta atenção. Torna-se, consequentemente, mero background: é algo feito de modo invisível, sem “grandes impactos”. Se o subproduto mais valioso do trabalho de cuidado é o tempo livre, temos que aceitar que há uma técnica intricada na sua execução. Essa técnica custa várias horas, pressupõe saberes. Se um grande território do labor é resumido ao background do dia a dia, esse resumo é uma estratégia política. Alguém precisa cuidar da casa enquanto as grandes mentes caminham.
A naturalização do trabalho de cuidado, enquanto estratégia política, chama atenção das pessoas que estudam gênero porque há uma evidente recorrência histórica no quanto esse trabalho é realizado por mulheres. Meu simples complemento à critica de Rebecca Solnit sobre o privilégio de caminhar é, enfim, apontar que há uma engenharia social dedicada à fabricação dos privilégios do tempo livre. Deixar de fazer pequenas tarefas, relegar a manutenção doméstica para outros ou simplesmente não se importar com organização significa, em síntese, que há alguém com tempo disponível, menos valioso que o nosso, para fazer essas coisas por nós. Mas não há um valor inerente ao tempo. Ele é relativo à forma como sociedade decide distribuí-lo.
E é aqui que tento forçar meu exercício de observação para a dimensão tecnológica do problema. Nossa sociedade parece aceitar, com cada vez mais facilidade, que a solução para o volume acumulado de trabalho de cuidado se resolve com gadgets. Robôs entregadores, robôs aspiradores de pó, secretárias falantes da Amazon, panelas que preparam a comida sozinhas2, dispositivos autolimpantes. Parece que é um futuro promissor que se desdobra, no qual pequenos aparelhos com suas baterias de lítio mega duráveis irão fazer todo o trabalho doméstico chato.
Mas, de novo, temos que lembrar que a tecnologia não é um fenômeno isolado. É uma inserção material na rede sociotécnica. Ou seja, por trás de cada gadget automatizado, ainda há um trabalho invisível sendo executado. Seja para construir esse gadget, transportá-lo, consertá-lo ou até mesmo dar um sumiço nele depois que sua vida útil termina. Essa dimensão não é a única problemática. Esse estudo de Peter Nagy e seus colegas demonstra, por exemplo, como a mediação tecnológica do tempo funciona. Por meio de dispositivos como smartwatches e seus softwares de gerenciamento de tarefas, nos distanciamos de noções localizadas do tempo para favorecer decisões executivas sobre o que significa aproveitar o dia ou ter uma manhã produtiva3.
Transferir o trabalho de cuidado de um grupo social para uma parafernalha tecnológica serve para continuar naturalizando sua execução como necessariamente invisível. Por algum motivo, nos convencemos que é degradante ou chato ficar limpando e organizando coisas. E nos colocamos, dessa forma, em busca desse cenário utópico, no qual alguém ou algo faz tudo e nos deixa livres, sem nada que precise ser cuidado.
Expediente
E não é que chegamos vivos ao fim de novembro. Vamos mantendo firme a pesada decisão executiva de disparar duas edições por mês. O que? Ninguém tinha percebido que temos duas edições por mês?
O Substack insiste muito para que deixemos disponível uma modalidade paga de assinatura. Eu, sem pensar muito nisso, defini um valor de 30 reais ao ano para quem quisesse contribuir sem ganhar nada em troca. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que algumas pessoas resolveram pagar mesmo.
A culpa católica bateu forte e eu comecei a me sentir um pouco responsável por essas pessoas. Que tipo de conteúdo poderia ser feito para assinantes exclusivos? Não quero ficar recomendando coisas, não sou underground o suficiente. Quem sabe eu possa soltar umas resenhas de livros, ou filmes, ou séries. Talvez liberar alguns contos pra tentar ir coletando críticas construtivas? Opiniões polêmicas? Fotos dos meus pés (descalços)? Fazer um Clube da Comédia? Não sei. De qualquer forma, a quantidade de assinantes ainda é baixa para exigir uma dedicação exclusiva, então vamos tentar fazer uma campanha: converta sua assinatura para a versão paga e, assim que batermos a meta, a newsletter Cartas do Bolívar passa a ter uma edição especial secreta. Com conteúdos secretos (não vai ter foto do pé, não se preocupe).
Geralmente: ofensas gratuitas, escárnio e oportunidades de trabalho perdidas por “queimação de filme”.
Não quero soar azedo, mas… ah, quero sim. Eu odeio a panela que cozinha sozinha. Não estou falando do conceito em si, mas de uma panela específica que apareceu na timeline nos últimos dias. Ela tem uns 8 compartimentos nos quais você deposita os ingredientes e temperos e ela vai preparando um strogonoff. Poxa, a parte difícil é justamente ficar picando cada ingrediente pra fazer o mise en place. Pra mim, esse uso não está distante do carro dos Flintstones que precisa ser movido pelos pés do motorista.
Vocês podem me cobrar mais para escrever sobre mediação tecnológica porque é isso que estou estudando no doutorado. Isto é, se eu não estiver ocupado limpando a casa ou cozinhando.
decepcionada que a carta secreta não vai conter ibagens do pé (risos) (é sarcasmo)
adorei essa edição. curiosamente, sou uma pessoa com bastante tempo livre para caminhar e, ainda assim, cuidar das minhas coisas (limpar, organizar, lavar e todo o resto). o problema é que eu tenho muito tempo livre numa era em que ter tempo livre é anormal: e é. eu tenho tempo livre por ter uma carga de trabalho baixa, e, por conta desse desastre, caminho 7km diários pensando como vou fazer minha renda se encaixar aos boletos (risos, de nervosa).
enfim, tá difícil achar o equilíbrio, ainda mais com o prenúncio do apocalipse.
novamente, adorei a carta! :)