Perturbação mental no supermercado, de acordo com cada categoria de produto
Vamos desvendar o que se passa na cabeça de quem vai às compras
Infelizmente, o supermercado é compreendido pela nossa civilização ocidental a partir de um ponto de vista de extremado utilitarismo. Fazemos uma lista, nos deslocamos até a propriedade da empresa multinacional, percorremos seus corredores mal iluminados com carrinhos em estados lamentáveis de preservação, empilhamos as compras ali dentro, enfrentamos a fila do caixa, constatamos o preocupante estado da economia nacional ao conferir a soma do custo das mercadorias, passamos no crédito e, para o restante da jornada, que ajudem os Deuses quem não tem carro.
Nessa simplificação, escapam os detalhes e minúcias de cada compra. A ordem que cada pessoa prefere, os processos de seleção dos produtos (por preço, por marca, por influência digital). Torna-se opaca a ideia de que ir ao supermercado não é apenas uma tarefa qualquer, mas praticamente um ritual moderno. Como um formigueiro composto por insetos individualistas, traçamos nossas rotas semanais ou quinzenais até esses nobres estabelecimentos para transportar suas commodities até nossas casas empregando métodos que refletem nossos valores, nossos temores, nossas recomendações nutricionais e nosso poder aquisitivo. Nessa curiosa dança, revela-se um aspecto performático da compra.
É em tal intricado sistema simbólico que está tanto a força quanto o perigo de ir ao supermercado, pois ele demanda uma pesada carga mental. Minha teoria, entretanto, é que esse sofrimento não se espalha uniformemente pelas gôndolas. Existem produtos que causam mais danos neurológicos do que outros. Organizei, na lista a seguir, uma espécie de ranking para cada categoria de produto, dos mais prazerosos para comprar aos que mais ferem a estética do supermercado.
S-TIER: melhores produtos, prazer garantido
Pães e demais artigos da padaria: definitivamente, a forma mais segura de agregar valor às estruturas do supermercado é instalar uma padaria em coordenadas estratégicas. Guiada pelo cheirinho de pão recém assado, a clientela provavelmente terá o momento mais feliz da experiência de compra perante a vitrine de pães franceses, croissants, broas, cuecas-viradas e demais carboidratos.
Adega: um supermercado com a mínima noção de bon-vivantismo perceberá que vale a pena investir em uma identidade própria para a gôndola dedicada aos vinhos e bebidas. Há algo de especial em poder levar para casa um agradinho alcoólico, é certamente um momento sublime da via-sacra do consumo.
Gôndola especial das promoções: em todo supermercado que se preze, há uma seção especial, às vezes até meio camuflada, dedicada aos produtos que estão próximos da data de validade. A data de validade, aliás, é um dispositivo político que visa a segurança e o bem-estar do consumidor e, em troca, infantiliza a relação, já que precisa explicitar didaticamente o risco de morte que uma pessoa corre ao consumir algo que está há três meses num pote na geladeira. Seja lá como for, faz bem aos sentidos poder comprar algo caro com um descontinho. O sacrifício, oh meu Deus, é ter que comer aquela coisa ainda hoje, todinha, o pote inteiro…
A-TIER: produtos cuja compra ocasiona o esboço de um sorriso
Açougue, peixaria e armazém: é praticamente uma fórmula do sucesso. Itens ancestrais, consumidos desde os tempos das cavernas, evocam memórias arquetípicas no momento da compra. Ao agarrar um belo pedaço de queijo, ao ensacar belas quinhentas gramas de alcatra, ao sentir o cheiro do peixe fresco, nos sentimos parte de uma espécie. Nos sentimos acolhidos. O supermercado pode oferecer acolhimento, desde que por um preço justo.
Temperos e especiarias: como é bom não precisar atravessar oceanos e destruir civilizações para oferecer um caráter adicional para a comida. A gôndola dos temperos só não está no topo da lista por dois problemas incontornáveis: eventualmente, nosso palato orienta escolhas para itens precisos que, muitas vezes, não se encontram no supermercado — e não encontrar algo no supermercado significa raiva, frustração, vontade de ouvir Korn, Slipknot. Além disso, temperos até que duram bastante, então acabamos visitando essa seção, muitas vezes, mais por saudade do que por necessidade.
Cervejas e outras bebidas: pode ser que se encontrem próximas aos vinhos na adega, pode ser que a gerência do supermercado as deixe lá no fundo, ainda nos engradados sobre os pallets da transportadora, e pode ser que você encontre embalagens dispersas pelo estabelecimento, sugerindo bons acompanhamentos para salgadinhos ou lotes contaminados. Comprar cerveja é sempre um refúgio.
B-TIER: produtos que compramos por necessidade, sem prazer envolvido
Setor de hortifruti: embora sejam símbolo de uma alimentação saudável, o processo de escolha de frutas e legumes toma tempo e transforma a experiência do supermercado em uma espécie de prática de investigação forense. É preciso estacionar o carrinho por um tempo e se lançar ao universo inóspito das cebolas, das bananas e das abobrinhas, as quais demandam avaliações cuidadosas em busca de caroços, machucados, insetos e outras aberrações contaminantes. Bons escolhedores exibem os resultados da compra como troféus em seus carrinhos, que maculam a estética do supermercado ao sugerir uma moral implícita: o carrinho que tem mais legumes dentro vai viver mais tempo que os outros.
Gôndola dos grãos e cereais: resgatando memórias dos tempos de escambo das civilizações do crescente fértil, a seção dedicada ao arroz, ao feijão e ao grão de bico encontra-se em declínio estético. Os produtos estão ensacados em plásticos pouco degradáveis, exibindo logotipos dos anos 70 e privando que o sentido do tato participe do processo de escolha. Trata-se de um momento breve, protocolar, no qual apenas compara-se o preço e o tamanho do saco antes de enfiar o produto no canto menos habitado do carrinho.
Gôndola da confeitaria: situação semelhante à seção de cereais, ao consumidor que opta por fazer os próprios bolos e assar os próprios pães reserva-se o momento emblemático do cálculo Quanto Peso Eu Consigo Carregar versus Quanta Farinha Eu Realmente Preciso Usar Essa Semana. Como intrusos que forjaram credenciais, estão nessa seção também as caixinhas de leite condensado e creme de leite. Quem são vocês? O que insinuam?
Compotas: essa divertida seção do supermercado nos introduz ao mundo dos potes e potenciais candidatos a substitutos econômicos para tupperwares. Minha teoria é que essa seção tem um apelo específico a faixas-etárias precisas. Como um sinusoide de distribuição normal, o doce de leite e os pêssegos em calda empolgam crianças e idosos, mas são ruidosos para adultos e jovens em busca de alternativas menos calóricas para o café da manhã.
Higiene pessoal: a depender do estabelecimento, vários metros quadrados de prateleiras são reservados para itens como sabonetes, cremes dentais, lenços umedecidos e outros itens de autocuidado. O grande fardo que o processo de aquisição desses produtos traz consigo é o desnude, em tempo real, da própria personalidade. Que tipo de sabonete você prefere? Você usa fio-dental todos os dias? Cuidado com o que coloca para dentro do carrinho. Os supermercados estão cheios de câmeras.
C-TIER: produtos cujo processo de compra provoca sofrimento
Ovo: ei, Batman, aí vai uma charada: você prefere passar 5 minutos escolhendo ovos ou confiar na integridade dos músculos das cloacas das galinhas e pegar uma embalagem lacrada de 20 ou 30 unidades? Além do tortuoso processo de verificação por rachaduras, a bandeja de ovos é, provavelmente, o primeiro item verdadeiramente frágil a compartilhar espaço no carrinho. Demanda um aconchego consciente, não pode ter nada muito pesado em cima. Comprar ovo é uma responsabilidade.
Gôndola dos animais de estimação: não é culpa dos bichinhos, mas uma seção inteira para ração, acessórios, tapetes para urina e areia para gato é uma espécie de ilha semântica na estética do supermercado. Destoante, ainda que, paradoxalmente, um momento de genuíno agrado, visto que o que ocupa nossas mentes, nesse momento, é o bem-estar do mascote que está em casa, ansiosamente aguardando pelo nosso retorno.
Congelados: eis o clímax de qualquer processo de compra em supermercado. O ritmo tranquilo do deslizar do carrinho pelos corredores sofre uma mudança de compasso: o maior problema da seção dos congelados é a contagem regressiva automática que começa no momento em que eu ponho uma batata ou um pacote de peito de frango no carrinho: preciso terminar as compras RÁPIDO ou esses itens vão começar a descongelar. A partir do momento em que eu agarro um pacote do freezer e coloco entre as outras compras, eu removo o produto do seu habitat natural e o submeto às condições atmosféricas normalizadas. Pode ser uma preocupação irreal, mas o sofrimento existe. Compre produtos congelados somente se você não pretende demorar pra chegar em casa. Deixe por último. Escolha seus legumes e ovos primeiro.
Produtos de limpeza: gosto de pensar nas distopias totalitárias que entenderam o problema e resolveram essa seção do supermercado do melhor jeito possível: acabar com essa palhaçada de tal marca é mais eficiente, tal produto limpa mais, tal marca é mais colorida. Nivelar tudo e oferecer apenas um rótulo branco, genérico. Isso evita a epidemia de pessoas abrindo garrafas, cheirando, fazendo tabelas e algoritmos para calcular preços vantajosos. Existem pessoas (eu) que sofrem por não saber qual marca de amaciante funciona melhor. Está mais do que na hora de algum deputado ou senador deixar de ter MEDO e propor a padronização global dos produtos de limpeza. Sem rótulo colorido, sem mascotes quiméricos, sem marca, só o nome popular do produto, seus ingredientes, o princípio ativo, as precauções e é isso aí. Eu por mim deixava até o governo mandar uma lista do que cada cidadão precisa comprar nessa seção e pronto.
D-TIER: produtos que destroem a estética do supermercado e acarretam desequilíbrio mental na hora de colocá-los para dentro do carrinho
Laticínios: provocam o mesmo problema dos congelados, com o agravante de que ELES NÃO ESTÃO CONGELADOS.
Doces, bolachas e bomboniere: ah sim, a disneylândia do supermercado. A dantesca gôndola dos doces é uma espécie de padaria na qual os carboidratos aceitaram o convite do Darth Vader para participar do lado sombrio da força. Não apenas uma afronta ao sistema digestivo, tais produtos também ocasionam uma ferrenha chaga na estética do supermercado ao sugerir, de forma extremamente artificial, que estamos em um lugar feliz. Em busca da obliteração do nosso autocontrole, esses produtos se agrupam em aglomerados simbólicos de satisfação do paladar enquanto, nos bastidores, desequilibram cadeias produtivas e incentivam a biopirataria. Tenhamos autocontrole! Um chocolatinho ou dois e chega!!
Papel higiênico: os pacotes de papel higiênico estão cada vez maiores. 30, 40, 50 unidades. Ocupam todo o espaço do carrinho. Demandam uma revisão da estratégia de assentamento dos produtos. São um espaço em branco na prancheta do mundo das compras.
Plásticos, material escolar, pilhas e baterias: esses são os produtos limítrofes, a fronteira entre o que precisa de fato existir em um supermercado e o que está aparecendo por ali graças aos contatos dos donos do estabelecimento com as máfias locais. Não é um problema comprar essas coisas, mas é o tipo de brecha ontológica que permite, por exemplo, que alguém um dia proponha a fundação do primeiro supermercado gamer.
BOTTOM-TIER: o fundo do poço. Passar por esses produtos, no supermercado, atesta nosso fracasso enquanto civilização
Eletrodomésticos: vamos combinar uma coisa aqui. Se eu quisesse comprar eletrodomésticos, provavelmente não estaria empurrando um carrinho de supermercado por aí. Entretanto, mais e mais estabelecimentos acham interessante dedicar pavilhões inteiros a robôs para aspirar pó, lavar roupa, liquidificar alimentos. Vejam bem, não estou sugerindo que essas coisas não são úteis ou não devem ser compradas. Mas o que diferencia um supermercado de uma loja de departamentos? Estamos diante de uma confusão categórica disfarçada de facilitação de consumo. Em breve, teremos supermercados fantasiados de loja de material de construção. Você não apenas abastece sua casa comprando lá, mas quem sabe também não aproveita e leva os materiais para fazer seu puxadinho no quintal.
Enxoval: percebam que estou operando, nessa categoria “bottom-tier”, de forma bastante conservadora. Você vai no supermercado para comprar roupas, definir seu estilo pessoal? É estranho pressupor que o mesmo estado mental usado para escolher entre pão fatiado e pão sovado também serve para navegar entre uma estampa de camiseta e outra.
Caça e pesca, camping. Esportes: ok, o que está acontecendo agora? Eu estou ficando maluco? Posso ir até o supermercado para comprar azeite de oliva e voltar de lá com uma barraca. É preciso parcimônia para não confundir o papel do supermercado na sociedade a partir do momento em que ele começa a reservar espaço para hobbies excêntricos. Elementos dessa natureza permitem que o supermercado vá ficando cada vez maior. Daqui a pouco você tem que programar uma viagem de três dias para fazer as compras, porque para chegar até o setor de hortifruti é preciso, antes, passar pelas espingardas, pelas piscinas infláveis, pelos acessórios de academia, pelo museu de história natural by grupo Extra etc…
Automotivo: nada fere mais a estética de supermercado do que o consumidor aproveitando a promoção do setor automotivo e empilhando 6 pneus Michelin no carrinho de compras. Não é nem sequer possível identificar algum ato performático nessa compra, o aspecto ritualístico já foi para o espaço sideral. A presença de uma gôndola para acessórios automotivos no supermercado escancara as piores mazelas da vida urbana, o carrocentrismo contemporâneo. Por favor, afaste o pão, preciso de espaço para a borracha nova do meu limpador de para-brisa.
Considerações finais
Será que foi o supermercado que evoluiu para satisfazer a ordem civilizacional humana, ou será que foi a civilização humana que foi se adaptando em torno da figura do supermercado? Essa é uma pergunta sem resposta, mas que sugere que sim, é possível localizar em tal estabelecimento um poderoso nexo de entendimento para nossas dinâmicas sociais. Somos animais consumidores.
Refletido na categorização científica do processo de compra, está um estranho desejo de otimização: transformar o supermercado em um espaço produtivo, no qual não deveria haver espaço para confusão, perda de tempo, devaneios. Produtos disputam por atenção, conquistam espaços: você logo descobre que existem gôndolas inteiras para o macarrão. De produto singular, ele evolui para uma categoria própria. Você olha para o carrinho e encontra um reflexo de si mesmo. Um reflexo que, em 2012, custava 80 reais, mas que, agora, precisará ser parcelado em duas vezes. Mas não sofra por isso. Não sofra por enquanto. Você ainda precisa escolher os ovos.
Adorei! Onde a escolha de comprar café entra na lista?
Chorei de rir 😂 e depois de chorar mesmo...
Praticamente um tratado da Sociologia Pragmatista.