Prolegômenos da maromba niilista
Não treine enquanto eles dormem: treine enquanto eles treinam. E depois durma. Enquanto eles treinam.
Opa e aí seu frango, tudo bem?? Haaaahahaha calma! Não estou te xingando, chamar alguém de “frango” é apenas uma brincadeira muito popular entre os meus amigos “marombeiros”. Outras brincadeiras também incluem postar frases motivacionais nas redes e gritar quando estamos em contato com algum aparelho muito pesado.
Poucas coisas são mais tristes e desoladoras do que começar a frequentar a academia. Não porque é um local deprimente, não é nada disso. Muito pelo contrário: são espaços amplos, bem iluminados, com música cujos ritmos remetem à festa e à algazarra. O motivo único e singular da desolação é essa inevitável constatação: ir para a academia não pode ser uma fase, algo que você faz por uns três meses e pronto. Trata-se de um compromisso, um contrato que você assina pro resto da sua vida. Se você quer que os exercícios que você fez essa semana valham à pena de verdade, então respire fundo, pois não tem mais como parar. Você precisa continuar calçando seus tênis, enchendo sua garrafinha d’água e indo até o templo do suor por pelo menos duas ou três vezes para cada semana que lhe resta como habitante desse planeta.
Vamos supor que cada sessão de puxação de ferro dure uma hora, e que você a repita por 3 vezes semanais. Se você iniciou suas atividades acadêmicas aos 30 anos com perspectivas moderadas de se aposentar aos 80, então você tem mais ou menos 7.800 horas de academia pela frente! Não é legal? Pense que isso é menos que o tempo que você gastará lavando louça também nos próximos 50 anos (cerca de 14.000 horas, se você tem um método consistente e não gasta mais do que uma média de 16 minutos diários nesta função).
Esse tipo de informação não deveria desmotivar ninguém. Na verdade, não há nada melhor do que um pouco de ciência exata para nos situar em relação ao nosso papel nesse universo físico.
Embora eu já tenha escrito algumas palavras sobre minhas experiências no mundo da maromba, não me considero nem próximo de ser uma autoridade na arte do ganho da massa muscular. Nunca foi meu objetivo: a prática da musculação se dá justamente como uma forma lamentável de justificar meus excessos no consumo diário de carboidratos, álcool e demais formas de autodestruição. É a velha máxima do equilíbrio entre vida saudável e pulsão de morte. Também não sou elegível como cronista da vida fitness nem nada do tipo. Eu, por mim, jamais me sujeitaria a isso. Praticar exercícios, ser saudável, comer salada, eu não acredito nem um pouco que essa seja a única forma válida de criar sentido para a própria vida. Quero dizer, vá em frente, faça tudo isso, mas não espere palavras de entusiasmo de quem pensa muito mais do que deveria em bolos e tortas recheadas.
Entretanto, nesse mês de novembro de 2023, estou completando exatos 10 anos de frequentação de academias. Como foi possível nunca ter largado mão disso tudo e continuar firme na supinação semanal? Confesso que, o que antes era um mistério, pode estar ficando cada vez mais claro. Hoje, mesmo aos domingos e feriados, eu entendo a força que me faz continuar, e não necessariamente é a dos músculos. Por isso, essa edição da newsletter é dedicada ao que chamarei de
Três Argumentos Para Não Desistir da Academia Ou Também Para Desistir Mas Sem Precisar Ficar Com Aquele Peso na Consciência
Vamos ver se eu consigo elaborar algumas palavras para transmitir um pouco da minha filosofia de não-desistência acadêmica. Isso é muito diferente de dicas para montar seus treinos (embora eu possa afirmar com certeza de que você deve combinar músculos sinergistas); também não é uma promessa motivacional ou garantia de resultados (palestras motivacionais custam caro e o acesso a esse conteúdo é gratuito). É apenas um conjunto de parágrafos dedicados a você que precisa de alguma estratégia esdrúxula e descabida para se convencer a começar, recomeçar ou continuar puxando ferro.
1. O Enigma da Esfinge, como o próprio nome já diz, é da Esfinge (não seu)
Tudo mundo que já tomou a péssima decisão de fazer aquele primeiro treino gratuito na academia acabou sendo interpelado pelos instrutores uniformizados com um questionário básico. Seu nome, sua data de nascimento, seu peso, se você precisa de estacionamento, se você tem vícios, se você sabe qual é a máquina adutora e qual é a abdutora. Eventualmente, a pergunta fatal é disparada: qual é o seu objetivo?
Apesar de parecer difícil esgotar a possibilidade de soluções para tamanho enigma, o escopo de respostas possíveis geralmente acaba se dividindo em duas possibilidades. Ou você está querendo perder peso, queimar calorias, reduzir seus números de um modo geral; ou é o oposto: você quer ganhar massa, ficar forçudo, ganhar muque. Virar monstro. É aqui que entra o aspecto central do meu primeiro argumento: nenhuma dessas duas respostas é a certa. Se você já entra na academia com um objetivo desses interiorizado, cristalizado, então são altíssimas as chances de você abandonar o projeto depois de alguns meses.
Não é errado querer perder peso ou ganhar massa. Na verdade, são motivadores iniciais muito válidos. Meu ponto é que tanto um quanto o outro implicam em coisas muito mais abrangentes do que ir pra academia fazer musculação. Ao começar a perder peso, o corpo humano liga os dispositivos de emergência, começa a sentir mais fome, inicia um racionamento energético. Isso acontece porque o corpo humano é feito pra sobreviver, não pra ser sarado. Ganhar músculo também não é uma questão de ir lá e ficar cansado e pronto. É preciso método, cálculos calóricos, personal trainers, um escambau de coisa.
A puxação de ferro torna-se apenas mais um ingrediente no meio de um sopão que também inclui dieta, mudança de hábitos, qualidade do sono, suplementação, reorganização de agenda, exames, aquisição de materiais esportivos. A gente logo percebe que atingir esses objetivos não vai demorar 3 meses, nem 6. É coisa de um ano até os primeiros efeitos da vida de maromba se tornarem perceptíveis, e, até lá, muita gente joga a toalha percebendo que essa vida ingrata não leva a nada.
Ganho de massa ou perda de peso talvez seriam melhor entendidos como consequências do que como objetivos. É uma mudança de perspectiva bem jaguara, mas funciona, porque talvez seja o necessário pra parar de pensar nisso (vide próximo argumento). Entretanto, a consequência trágica é a insistência do enigma: afinal de contas, qual deve ser então o meu objetivo para fazer qualquer atividade física?
Se ganhar ou perder peso não são respostas fortes o suficiente para validar o suplício do corpo, obviamente devemos buscar justificativas com âncoras emocionais mais bem encravadas. O objetivo do treino precisa ser visceral, precisa ser um propósito sanguíneo, maquiavélico. Esqueça o amor pelo próprio corpo, é preciso deixar o ódio falar mais alto nessas horas. Não procure razões externas, motivos nobres, não racionalize. Quando o instrutor perguntar sobre seus objetivos, não responda que quer emagrecer ou ganhar músculo. Responda apenas: vingança.
A melhor tirinha sobre a vida de puxação de ferro: Academia FuckMuscles, por Drontocore.
2. A academia não é a solução para os problemas. Ela é mais um problema que precisa ser resolvido
Nada ilude e alegra mais o espírito humano do que a promessa da paz. Sempre acabo me lembrando de uma célebre máxima atribuída a Platão: apenas os mortos conhecem o fim da guerra. Gosto de levar esse tipo de pensamento comigo quando reflito sobre a necessidade de puxar ferro. Tão perigosa quanto a vontade de largar tudo, a ideia de transformar a musculação em um estilo de vida me é assustadora tal e qual.
É necessário parar por um segundo e considerar as consequências vis do primeiro argumento que descrevi. A partir do momento em que encontramos uma motivação plausível para praticar musculação, é muito fácil que a coisa acabe degringolando para uma subversão, ou que acabe se tornando uma paródia de si mesma. Desta vertente corrupta de pensamento, desenvolve-se a invasão de influencers, proselitistas e evangelistas da maromba, os milhares de acólitos patrocinados por marcas de suplementos, calças legging e barrinhas de cereais. Preciso esclarecer, desde já, que esse não precisa ser necessariamente o objetivo da vida acadêmica. Na verdade, esse movimento gera graves consequências para nós, pessoas extremamente normais.
Desta forma, que surge em torno da academia é uma espécie de estética da maromba. Criam-se parâmetros e imaginários inatingíveis, cujo mais direto impacto incide na motivação para continuar se exercitando. Afinal, como poderia eu ficar igual aos rapazes e moças dos anúncios, das novelas, dos Reels? Espelhar-se na mídia é uma péssima estratégia desde que começaram a fazer filmes sobre policiais e soldados espertos. O que estou querendo dizer, em resumo, é que interpreto essa tendência como uma completa aceitação da academia como forma de conferir sentido à própria vida. É muito importante, portanto, aceitar que a academia não é uma solução. Ela é apenas mais um problema.
Explico. A partir do momento em que você deposita na musculação a esperança de resolver seus problemas, suas expectativas fatalmente coincidirão com dois destinos possíveis. Seu comprometimento fará com que você aceite a estética da maromba, busque adequar-se á performatividade do contexto e, em breve, sua vida será ocupada, em grande parte, com os elementos dessa estética. Esse sentir-se bem enquanto está na academia é perigoso porque basta uma gripe, uma intoxicação alimentar, uma lesão no ombro ou uma pandemia do novo coronavírus para descobrir que, pasmem, é preciso buscar sentido em outros lugares enquanto as portas do salão estão fechadas. Mais grave que isso seria, porém, o segundo destino: entregar-se de corpo e alma à academia e, ainda assim, descobrir que os problemas da sua vida permanecem. Levantar pesos, fazer prancha e correr na esteira podem não ser suficientes para aplacar a desolação da vida na sociedade capitalista.
Por isso, minha sugestão é fazer um esforço para reposicionar a academia. Se pararmos de acreditar que ela é a solução, é muito fácil torná-la apenas mais um problema, um item da sua lista de afazeres diários que precisa ser riscado. Ao contrário dos problemas complexos, que exigem uma carga mental absurda para serem encarados, desmontados e solucionados, a academia é um problema idiota, simples. É um problema muito fácil, é só ir lá e puxar as coisa. Puxar as cordinha, erguer as bolinha. Você não precisa desenhar fluxogramas e construir protótipos para concluir suas 4 séries de remada. Um cachorro treinado poderia fazer musculação se quisesse.
Assim, a academia deixa de ser uma solução para o seu vazio existencial e torna-se uma solução para si mesma. Você pode ir até a academia, praticar sua rotina e, na volta, dedicar-se aos seus amigos, família e animais de estimação como elementos mais interessantes para o complexo (esse sim!) problema do preenchimento emocional.
Concluindo: é errado pensar na academia como solução, e também não vale a pena ficar tornando-a um problema muito complexo. O ideal é simplesmente não pensar em nada. Quanto mais você pensa na academia, maiores são as chances de chegar à conclusão que o exercício não vale a pena e que é melhor ficar em casa. Sem pensar em nada, você consegue cumprir sua meta de exercícios e esquecer que a musculação faz parte da sua vida logo em seguida. Desocupar a cabeça de alguma coisa significa sempre poder ocupá-la com algo melhor: videogames, esportes, Império Romano, a vida das subcelebridades cariocas, técnicas de armazenamento de restos de comida, extraterrestres do passado, promoções de creatina… ops, desculpe, estava pensando na academia de novo.
3. Compromisso é o caralho
A palavra “músculo” tem origem na expressão que os antigos gregos usavam para se referir aos ratos. Provavelmente, quando eles observavam algum marombeiro movimentando seus braços e costas, eles percebiam o movimento muscular por baixo da pele e comentavam coisas como “olha que engraçado, parece um ratinho caminhando embaixo de um lençol”.
Depois de alguns séculos, as pessoas começaram a dissecar corpos para estudar melhor esses misteriosos músculos e descobriram que eles estão por todos os lugares. Tem músculos na bunda, no rosto, nos olhos, na barriga. O coração é um músculo também. Eles começaram a receber nomes. Cálculos foram feitos para descobrir quanto por cento de músculo tem em um corpo, e como esse número pode ser modificado de acordo com cada tipo de corpo almejado. Embora a prática do atletismo seja muito antiga, a ideia do corpo como um projeto de identidade é mais recente. Frequentar uma academia para treinar músculos sem objetivos olímpicos é um hábito um tanto moderno, fruto desse pensamento estranho atrelado à saúde, longevidade, álbuns de fotografias padronizados em torno de temas aleatórios.
Justamente por isso, a impressão que dá é que há um tempo específico no qual estamos “cuidando do corpo”, em contraste aos demais momentos do dia no qual cuidamos de outras coisas. Foi Descartes que, sozinho em seu apartamento na França, resolveu decidir que um método válido para ter certeza de que não estava sendo enganado por espíritos malignos seria, antes de mais nada, delimitar um ponto de partida preciso no próprio ato do pensamento. O “penso, logo existo” de descartes é essa aceitação de uma brecha intransponível entre o corpo e a mente, uma espécie de divisão necessária para acreditarmos que há um domínio próprio do pensamento, cuja relação com o corpo humano é, no mínimo, incompreensível por essa mesma mente.
O chamado “erro de Descartes” resulta nesse dualismo que é praticamente senso comum: na ideia de que há uma mente pensante que ocupa um corpo — este, por sua vez, uma mera casca, um receptáculo para o fantasma que habita nossas cabeças. Desde já, vamos deixar o jogo bem claro por aqui: nosso grupo de estudos rejeita essa cisão cartesiana. A mente humana (se é que existe algo assim) não nos interessa nem um pouco. Tudo que nos pertence, tudo que nós somos é, em última instância, o nosso corpo.
Dessa renúncia à substância mental, decorre a trágica conclusão de que não há nada para cuidar além do nosso próprio corpo. Não que a academia seja um equivalente para a terapia. Essa noção é apenas um reforço, parece uma forma de manter o dualismo e reduzir as atividades físicas a um suposto bem-estar mental. Quero dizer, vá lá, esse até pode ser um resultado: exercícios liberam endorfina, sensação de dever cumprido etc. Porém, todos os caminhos levam à inescapável constatação de que estar vivo é, até o momento, estar em contato com o próprio corpo.
Por isso, se serve como terceiro e último argumento não apenas para a academia, mas para se mexer de uma forma geral, é que se você não fizer isso, ninguém o fará por você. Ter um corpo é idiota, ninguém pediu por isso. Mas cá estamos, nesse eterno confronto com a idiotia.
Conclusões precipitadas
Para resumir as ideias desse ensaio em uma frase, podemos dizer: fazer exercício físico requer, ao mesmo tempo, uma motivação válida e uma completa ausência de reflexão sobre o assunto, porque tudo que a gente faz, na vida, é alguma forma de exercício físico.
Espero ter conseguido não soar pessimista: frequentar a academia não é ruim, nem bom. É como frequentar o teatro: você vai lá, observa aquela movimentação estranha de corpos, e depois volta pra casa. Algumas coisas ajudam a manter a assiduidade: ter um grupo de amigos para conversar sobre isso, trocar dicas, compartilhar receitas proteicas. Ter uma playlist boa também. Tênis confortáveis. Só cuidado pra não começar a pensar muito sobre isso. Pense uns 10 minutos e está bom.
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Maravilhoso texto! Pra mim a academia serve para beber e comer sem tanto peso na consciência. Queria ficar gostosa, mas não consegui. Pelo menos estou envelhecendo com a bunda empinada, já está de bom tamanho. Em relação a sociabilidades dentro da academia, nunca consegui. Parece que eu não quero me sentir compartilhando o mesmo mundo que eles, sendo que eu tbm já me tornei eles. Enfim...
Simplesmente genial. Eu estou indo à academia já fazem 2 anos, e pasme, comecei a ficar obcecado por memes de academia, roupas esportivas, sheikeiras e suplementos. É uma coisa muito maluca, porque antigamente eu odiava o mundo dos marombas, e hoje, me sinto parte deles. Virei amigo até da moça da recepção (ela faz unhas e limpeza de pele também).