Livros: que conceito bizarro. De onde eles vêm? Quem anda escrevendo tudo isso? Não apenas acredito que seja muito difícil responder a tais perguntas, também suspeito que elas sejam apenas uma armadilha para continuarmos lendo ainda mais livros em busca de respostas.
Hoje, estamos aqui reunidos para fazer uma breve lista de algumas leituras do ano passado. Já fiz esse mesmo esquema para os livros de 2021 e para os de 2022, o que nos deixa cada vez mais próximos da tão sonhada biblioteca comentada — uma biblioteca, todavia, caótica, heterogênea e enviesada. 2023 foi um ano de muitas leituras acadêmicas: obras e referências que estudei para incorporar à minha tese. Mas também foi um ano de respiros e leituras recreativas entre um calhamaço e outro. Está tudo meio misturado. Eu cortei alguns livros técnicos e manuais, mas deixei outros que fiz questão de escrever sobre1. Sem mais delongas, vamos a eles, os “livros”:
A Vida Mentirosa dos Adultos (Elena Ferrante, 2020)
Para quem nunca leu nada da Elena Ferrante, aí vai um aviso: a autora vai te empurrar para um mergulho no universo feminino. O coming of age da personagem principal é desencadeado por uma fala infeliz do seu pai, comparando-a com uma tia de quem ela sempre ouviu falar como sendo uma pessoa feia, indesejável. Giovanna reage à comparação decidindo investigar o passado da família. Em um belo dia, ela consegue convencer seus pais a levá-la para conhecer essa tal tia Vittória. Há, pois, a consequente constatação das várias nuances que os conflitos familiares escondem. A protagonista, enquanto deixa de ser criança e vai entrando em confronto com as mentiras dos adultos, descobre os traços de si mesma nessa tia indesejável, mas não os recusa: compreende que somos também aquilo que escolhemos aceitar. No fim, uma leitura bem provocante, envolvente. Minha esposa é muito fã da tetralogia e A Vida Mentirosa parece ser uma boa introdução aos que ainda não se renderam ao ferrantismo literário.
Obs: tentamos assistir à série baseada nesse livro, mas achamos bem ruim. Sei lá, acho que os atores não vendem muito bem os papéis.
Waiting for Foucault, Still (Marshall Sahlins, 1993)
Eu acho que tenho uma carga de leitura de Foucault suficientemente ampla pra já poder apreciar também os seus críticos. E o Foucault tem muitos críticos: suas teorias nem de longe são uma unanimidade no meio acadêmico. Assim como encontramos muitos entusiastas das análises do discurso e das teorias do micropoder, há também os que não deixam muito barato para o francês. Um de seus críticos mais bem-humorados é Marshall Sahlins. Esse livro trata-se de uma coletânea de pequenas reflexões e piadas que ele juntou para fazer uma espécie de stand-up durante o evento do quadragésimo aniversário da Associação de Antropólogos Sociais do Reino Unido, em 1993.
Confesso que fui pego de surpresa por parágrafos extremamente espirituosos e, ao mesmo tempo, didáticos. Sahlins entrelaça algumas observações sociológicas com críticas aos pressupostos foucaultianos do poder. Em termos gerais, Sahlins lamenta que muitos seguidores de Foucault acabem “achatando” o fazer antropológico em busca da identificação dos mesmos padrões nos fenômenos estudados, como se tudo fosse uma questão de localizar as relações de poder entre diferentes esquemas sociais. Temos que lembrar que a máxima da antropologia não é estudar o que faz todos os seres humanos serem iguais, mas sim compreender o que torna cada um de nós diferente do outro. Teve uma passagem que eu gostei tanto que vou até traduzir aqui para vocês:
O que me parece cada vez mais estranho é a forma pela qual os Weberianos [quem estuda Max Weber] se tornaram obcecados pela questão do porquê uma sociedade ou outra falhou para evoluir em direção a esse summun bonum da história humana: o capitalismo — da forma como os ocidentais o conhecem e o amam. Em 1988, quando estive na China, esse tópico estava evocando muita Confução [trocadilho com “Confúcio”]. Ouvi um sinologista americano lamentar que a dinastia Qing tinha chegado “tão perto” de uma decolagem para o capitalismo na China. Isso me soa tal e qual perguntar por que os povos das cordilheiras da Nova Guiné falharam em desenvolver a espetacular cerimônia potlatch dos Kwakiutl. Essa é uma pergunta que um cientista social Kwakiutl poderia fazer, visto que as elaboradas cerimônias de comércio de porcos [Moka] entre os clãs da Nova Guiné chegaram “tão perto”. Mais próximo do tema — ou talvez seja exatamente esse o tema — está a pergunta dos missionários cristãos sobre como seria possível que os fijianos, em seu estado natural, falhassem em reconhecer o verdadeiro Deus. Poderíamos muito bem perguntar por que os cristãos europeus não desenvolveram os rituais de canibalismo dos fijianos. Afinal, eles chegaram tão perto.
Políticas da Imagem: Vigilância e Resistência na Dadosfera (Giselle Beiguelman, 2021)
O livro de Beiguelman vem de uma tradição que busca recontextualizar nossa compreensão sobre o ideia de “imagem” a partir da mudança dos meios tecnológicos. Em uma narrativa repleta de exemplos contemporâneos de instalações artísticas e outras manifestações imagéticas, a autora vai desenvolvendo um argumento sólido sobre nossa situação cada vez mais “cercada”: estamos perdendo o controle da nossa própria imagem perante as políticas maquínicas. Somos quem somos no mundo real mas também somos nossos milhares de retratos espalhados pela rede. Reforçam-se as questões de vigilância, ética e tratamento de dados.
O tema do livro é deveras próximo do meu objeto de pesquisa no doutorado. De fato, Beiguelman traz referências que também são muito importantes para meus estudos, como Jonathan Crary, Foucault e Yuk Hui. Terminada a leitura, mandei um e-mail para a Giselle, perguntando se aceitaria fazer parte da minha banca de avaliação na qualificação. E não é que ela aceitou?
Technology and the Lifeworld: From Garden to Earth (Don Ihde, 1990)
What Things Do: Philosophical Reflections on Technology, Agency and Design (Peter-Paul Verbeek, 2005)
Verbeek é um discípulo de Don Ihde. Ele adota a ideia de que tecnologias são multiestáveis e desenvolve isso, puxando um tema que ajuda a esclarecer esse aspecto plural dos artefatos de uso: o design. Justamente por criar uma proposta de união entre esses dois mundos, Verbeek vem chamando a atenção de designers que desejam incluir algumas reflexões sobre tecnologia em seus trabalhos.
Esse livro, em particular, me causa enorme espanto por ser tão bem estruturado e didático. Verbeek passa por Heidegger, Marcuse, Husserl, Latour e Ihde para criar uma sistemática concisa para compreender o que chama de abordagem pós-fenomenológica para a mediação tecnológica.
History: A Very Short Introduction (John Arnold, 2000)
Existem livros de história e livros sobre história. Essas referências de método reaparecem a cada ano e correspondem a diferentes “tradições”: é possível conduzir pesquisas sob inúmeras abordagens, de acordo com o tipo de problema que cada pesquisador está procurando investigar. Os livros sobre história social, por exemplo, trazem algumas premissas metodológicas para quem quer pesquisar algum evento ou acontecimento histórico sob a perspectiva das teorias sociais. Mas pesquisas históricas não são conduzidas apenas com teorias. Há também alguns conhecimentos e técnicas que ajudam o pesquisador a ler e interpretar documentos. A paleografia é uma delas: trata-se do conjunto de métodos para ler documentos antigos e decifrar a letra da caligrafia dos escrivães.
A breve monografia de Arnold é uma introdução, um apanhado geral sobre as principais teorias historiográficas e alguns dos questionamentos enfrentados por quem escolhe esse tipo de método de pesquisa. Aceitar fazer uma pesquisa histórica é aceitar, também, escolher lados em alguns dilemas. Dilemas que dizem respeito a nossas impressões sobre o passado: o quão diferente ele é do agora? As pessoas que existiram por lá são mais diferentes do que nós somos entre nós mesmos, aqui no presente?
Dos Meios às Mediações: Comunicação, Cultura e Hegemonia (Jesus Martín-Barbero, 1993)
As teorias da comunicação tem uma espécie de consenso sobre a linha do tempo que as ordena. São estudos que, de certa forma, evoluem para permitir uma complexidade cada vez maior para o fenômeno da comunicação. Iniciamos com uma esquematização sobre as partes envolvidas no processo (emissor, receptor, canal, mensagem etc). Depois, algumas escolas de pensamento escolhem debruçar-se sobre um ou outro desses elementos com mais ênfase. Os teóricos da escola de Frankfurt, por exemplo, estão interessados na relação entre emissão e consumo de mensagens. Conceitos como a “indústria cultural” são fruto desse pensamento.
Martín-Barbero parte da teoria crítica para situá-la na América Latina. Entendo seus estudos em comunicação como uma manobra de contextualização para as teorias hegemônicas da área. Na primeira parte do livro, o autor delineia como o “povo” se estabelece como um conceito histórico, sempre em estreita relação com sistemas de legitimação do poder político. Pela instauração do modelo de “sociedade das massas”, a ascensão do modo produtivo capitalista configura-se “modelando” a multidão em seus aspectos caracterizantes: suprimem-se antigas formas de viver e instauram-se movimentos hegemônicos voltados ao controle e a organização. O ponto-chave é que Barbero busca em Gramsci uma fundamentação para o que entende por “hegemonia”: todo movimento de poder hegemônico incita, via de regra, um movimento contra-hegemônico como resposta.
Tradições e costumes medievais persistem, portanto, de forma “residual”. Atuam como mecanismos de refração para as imposições do capital. É daí que sai a concepção de “mediação”: se a indústria cultural parte de processos hegemônicos, a comunicação não pode ser reduzida a um “problema de meios”, isto é, assemelhada a um processo de degradação ou simples subversão. Para conciliar classes distintas, aproximando o vulgar do reprimido, “mediações” entram em cena a partir de veículos mistos como os folhetos da literatura de cordel (uma leitura que é escrita e oral simultaneamente), as imagens adaptadas para as iconografias populares (em seus aspectos seculares e, ao mesmo tempo, educativos) e os melodramas (que conciliava complexidade dramática e apelo popular). O livro é muito mais abrangente que isso: na terceira parte, Barbero propõe uma simetria e aplica esses conceitos à produção cultural latinoamericana. É uma leitura, no mínimo, reveladora.
Borgia (Alejandro Jodorowsky, 2010)
Os desenhos altamente sugestivos e despudorados de Milo Manara transformam a narrativa histórica de Jodorowsky num bacanal danado. Borgia conta a história do Papa Alexandre VI, nascido Rodrigo de Borja — uma espécie de Don Corleone do Renascimento. São quatro volumes cheios de violência, safadeza e cachorrada. Recomendo.
Jimmy Corrigan: O Menino Mais Esperto do Mundo (Chris Ware, 2000)
É incrível o que se encontra por aí dando sopa nos sebos. Por apenas 32 reais, você leva pra casa o Jimmy Corrigan e, de brinde, um belo soco no estômago. Esse quadrinho autobiográfico tem um traço simples, anguloso e que parece muito essas instruções vetoriais para montagem de móveis. Mas a história que ele conta é um drama entre gerações, uma história sobre abandono, sobre refúgios, sobre a necessidade de encontrar algum sentido no meio de tanta coisa estranha. É uma história que me lembrou que conhecer o passado não serve para simplesmente não cometer os mesmos erros. Serve para saber um pouco melhor o que fazer quando esses mesmos erros insistirem em continuar acontecendo.
Os Despossuídos (Ursula K. Le Guin, 1974)
Já faz muito tempo que li A Mão Esquerda da Escuridão e, de lá pra cá, deixei a Ursula em stand-by, numa promessa de que um dia retornaria para as ficções científicas dessa autora. Ano passado, caiu nas minhas mãos a belíssima edição d’Os Despossuídos que a editora Aleph trouxe para o Brasil em 2017. A história narra a tentativa diplomática de Shevek, um habitante de Anarres que viaja para o planeta vizinho, Urras, para onde fora convidado por uma universidade para concluir suas teorias sobre viagens espaciais. A trama vai, aos poucos, nos apresentando a história que une esses dois planetas: Anarres é uma colônia de Urras para a qual foram enviados alguns habitantes, antigamente. Eles eram um grupo de anarquistas que recebeu essa oportunidade de auto-exílio: poderiam se estabelecer por lá e colocar em prática um modo de governo descentralizado, sem uma figura autoritária — uma espécie de comuna libertária auto-sustentável.
Quando Shevek chega ao outro planeta, descobre um sistema capitalista ainda em vigor. Uma sociedade segregada, com classes que esbanjam fortunas enquanto pessoas passam fome nas ruas. O modo de vida de Anarres logo revela que há também uma diferença enorme de vocabulário: Shevek não tem nem ao menos algumas palavras para conseguir descrever o que presencia por lá. Chama a minha atenção a estrura de capítulos: Ursula começa a história no presente, com Shevek embarcando para sua jornada, mas intercala cada capítulo com uma timeline paralela, partindo da infância do personagem até o momento que inicia o primeiro capítulo. Eu malandramente adaptei essa mesma estrutura para contar minha distopia sobre a existência objetiva do Papai Noel.
A Nova Razão do Mundo: Ensaio Sobre a Sociedade Neoliberal (Pierre Dardot e Christian Laval, 2009)
É bom ir anotando e destacando as partes mais importantes de qualquer texto que a gente leia. É um exercício de relevance realization: ler um trecho e imediatamente considerá-lo útil para futuros estudos, sínteses, epifanias pessoais etc. Quando fui gerar o arquivo de anotações do livro de Dardot e Laval, tive uma pequena surpresa:
TUDO nesse livro é importante. Desde a genealogia que os autores fazem, até as análises contemporâneas das manifestações neoliberais, a tese dos autores se desdobra para uma abrangente cosmovisão do que eles interpretam como a “nova racionalidade” que vigora no cenário geopolítico de hoje. O livro é dividido em duas grandes partes. Na primeira, uma fundamentação é construída para traçar uma linha do tempo entre o ordoliberalismo alemão e as noções compartilhadas de “empreendedorismo” que temos hoje. Na segunda parte, Dardot e Laval tentam cercar o fenômeno do neoliberalismo a partir das políticas internacionais colocadas em prática nos anos 1980. O último capítulo, “A fábrica do sujeito neoliberal”, é uma pedrada sobre a mercantilização das relações sociais.
A Máquina de Fazer Espanhóis (Valter Hugo Mãe, 2010)
Um problema com o ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento, a inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico, a repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de que amanhã estejamos mais espertos quando, pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades, a esperança que se deposita na criança tem de ser inversa à que se nos dirige, e quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso sem dúvida, não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro demais e ir como que apodrecendo, igual aos frutos.
Crônica de uma Morte Anunciada (Gabriel García Márquez, 1981)
O meu problema é o seguinte: Gabriel García Márquez é um dos meus escritores favoritos. A Crônica de uma Morte Anunciada, porém, é apenas o quarto livro dele que eu leio. Mesmo tendo lido pouco, a experiência é sempre muito parecida: eu começo e não consigo parar. Nessa pequena novela, o personagem principal tem seus últimos momentos de vida reconstruídos pelo testemunho de conhecidos da cidade. Jurado de morte, ele acabou assassinado por um recém-casado que descobriu que sua esposa não era virgem. A graça está na destreza do relato. Como um alquimista de palavras, García Marquez não deixa a gente se distrair. Mesmo a narração extremamente gráfica do assassinato, da morte anunciada, é uma leitura linda. Como ele faz isso?
Designs for the Pluriverse: Radical Interdependence, Autonomy, and the Making of Worlds (Arturo Escobar, 2018)
Já que estamos falando de tantos escritores colombianos, a sensação do momento, no mundo do design, é o trabalho de Arturo Escobar. O antropólogo inicia esse livro propondo a seguinte pergunta: conseguiremos libertar o design da sua inserção em práticas modernistas, insustentáveis e desfuturadoras, redirecionando-o para outros compromissos, práticas, narrativas e performances ontológicas? No fundo, o que Escobar (não somos parentes, acho) está propondo é uma nova “virada” para abordagens humanistas para o design, afastando-o da noção de mera “prática projetual” e tornando-o um conceito mais amigável para esse paradigma de pluralismo ontológico. Para Escobar, é fundamental que designers façam a seguinte reflexão: se estamos criando coisas para o mundo real, precisamos estar preparados para encontrar vários “mundos reais” por aí. Isto é, a partir do momento em que aceitamos que estamos desenvolvendo modos de viver por meio dos artefatos que criamos, então estamos também sujeitando pessoas diferentes a esses mesmos “modos de vida”.
No último Congresso Internacional de Design da Informação (CIDI 2023), a palestra de encerramento foi um bate-papo com Donald Norman. Um dos livros indicados por ele foi essa obra de Escobar. Ou seja, há uma forte corrente entre designers, tanto na academia quanto no mundo profissional, que está começando a aceitar esse tipo de “contingencialismo radical” que o design pluralista demanda. Resta descobrir como isso pode se traduzir em práticas educacionais e nas nossas tarefas do dia-a-dia…
Philosophy and the Mirror of Nature (Richard Rorty, 1979)
Não é fácil resumir um livro que abrace tantas questões como a magnum opus de Richard Rorty. Partindo dos conceitos linguísticos de Wittgenstein, o que o filósofo norte-americano está propondo, no fundo, é um desafio: ele quer descobrir se é possível fazer filosofia. O problema começa quando tal disciplina se propõe detentora do direito de discutir essas “questões perenes” sobre o saber, a ética, a existência etc. Para Rorty, existe um problema nas bases estruturais desse pensamento, que se inicia pela tradição cartesiana e sua “brecha intransponível” entre mente e corpo. E é justamente esse conceito que o autor ataca com mais veemência na primeira parte do livro. Seu objetivos são claros: minar a confiança do leitor na “mente” como algo sobre o qual se deveria ter uma visão “filosófica”; no “conhecimento” como algo sobre o qual deveria haver uma “teoria”.
No fim, o que Rorty defende é aceitar a filosofia como um jogo de linguagem. Ela não é uma ciência do saber — não é um “espelho” da natureza, representando fielmente o mundo real por meio de conceitos abstratos. A filosofia não é a arte de saber o “como” ou o “por quê”: ela é uma prática que busca o “mas”. Nesse modo edificante de fazer filosofia, o objetivo não é demonstrar verdades universais ou elementos objetivos do conhecimento: é apenas fazer a conversa fluir. Ah, foda-se, eu vou falar logo: estou apaixonado por Richard Rorty.
O Jogo dos Mundos (César Aira, 1998)
É incrível que Aira tenha publicado esse livro na década de 90: ele parece ter sido escrito semana passada. É um conto curtinho de sci-fi, então não vou dar spoiler: em um futuro não muito distante, a nova moda que está abalando os corações da juventude é o Jogo dos Mundos, um video-game de simulação de guerras e invasões interplanetárias.
Angola Janga: Uma História de Palmares (Marcelo d’Salete, 2017)
Esse quadrinho conquistou meu coração logo na primeira página por ter um traço que lembra muito o Isaac, o Pirata, que é uma obra pela qual tenho grande apreço. Angola Janga combina documentação histórica do Brasil colonial com uma narrativa centrada no personagem Soares, um ex-escravo que, após fugir da fazenda da qual era prisioneiro, passa a fazer parte da guarda pessoal de Zumbi dos Palmares. D’Salete inclui diversas passagens introspectivas entre um capítulo e outro, nas quais seus traços em preto-e-branco fazem um zoom como ponte entre os personagens e os elementos da natureza, ou entre os cenários e os objetos mágicos dos conselheiros espirituais dos quilombos.
Intercalando os capítulos estão alguns trechos de documentos e obras sobre a época, que contextualizam o leitor quanto aos acontecimentos retratados. Isso tudo deixa Angola Janga ainda mais certeiro como um quadrinho que se pretende uma aventura fantástica e, ao mesmo tempo, uma ficção histórica extremamente fiel. É uma obra prima dos quadrinhos brasileiros que merece prioridade na fila de qualquer apreciador do formato.
Pequeno dicionário de etimologia alternativa (Bruno Cobalchini Mattos, 2023)
Deixo por último o livro que, provavelmente, foi minha leitura favorita de 2023. Em uma enevoada manhã de inverno, recebo um alerta de Natan, meu amigo e fundador da Contravento, a editora que publicou o Livro da Jojoca. Na mensagem, o anúncio sobre um lançamento de livro que, segundo ele, era extremamente próximo das jojoquinhas. O Pequeno dicionário de Bruno trata-se de uma coletânea de contos cuja premissa central é inventar contextos alternativos para a origem de algumas palavras selecionadas pelo autor. “Sina”, por exemplo, torna-se uma expressão yanomami para “mau-atirador”. Um “articulado” é um pescador do ártico que consegue se comunicar bem usando poucas palavras. “Muamba” foi uma expressão que se popularizou graças a uma cachorrinha que tinha esse nome — ela fora treinada para transportar carga ilegal entre a fronteira do Brasil com o Paraguai. Não sei nem escolher o melhor, mas fico entre a fábula pré-colombiana sobre a origem da palavra “Quicar” e o fantástico relato gaúcho sobre a “Milonga”.
O exercício se desenrola por 106 páginas, explicando a origem de 20 palavras por meio de 19 contos e 1 poema. Eu me encantei pelo livro porque sou um grande adepto da etimologia alternativa. Vivo fazendo esse tipo de brincadeira no twitter, mas estou longe de ter a desenvoltura do Bruno para criar relatos tão originais e coesos sobre suas etimologias paralelas.
Mas acho que o que vale mesmo, no caso desse livro, é percebermos como cada palavra tem uma espécie de componente mágico. A forma como significados se estabelecem é sempre um misto entre o arbitrário e o lógico, um paradoxo de entendimento que nos aproxima do nosso entorno e gera o fascínio pelo que está distante. Eu gosto muito da palavra alemã “jetzt”. Ela significa o nosso “agora” do português, o qual, por sua vez, é muito próximo do “ahora” espanhol e parece semelhante também ao “adesso” italiano porque, segundo a etimologia, a origem do agora é o latim para “hac hora” (nesse momento). O equivalente germânico deu origem ao “now” da língua inglesa, que é muito parecido com o “nu” holandês ou o “nå” norueguês. Mas por que o “jetzt” alemão é tão diferente do “now” inglês, sendo as duas línguas radicalmente próximas? Ora, o inglês tem uma palavra parecida com “jetzt”: seria o “yet”, usada para significar o “ainda”… que lembra muito o português para “já”, que pode ser um sinônimo para o “agora”.
Isso não é um estudo etimológico sério. É uma espécie de monólogo, mas ele não passa longe das reflexões de Bruno no seu Pequeno dicionário. Isso se dá porque toda tarefa de escrita é a mesma exploração do mundo dos significados, onde vamos mexendo letras e enfileirando elas em busca de novidades. O Pequeno dicionário é um divertido aceno à pesquisa etimológica, uma eterna lembrança para o fato de que, por trás de uma origem, há outra origem e assim sucessivamente. É um jogo de palavras, e nosso papel é continuar jogando, tentando descobrir até onde vai esse tabuleiro. A palavra “tabuleiro”, aliás, tem origem arábica: era o nome da grande prancha de madeira que as cozinheiras usavam para preparar uma salada à base de trigo, tomate, salsa e hortelã durante os anos do império Aquemênida. Ou não.
Como eu mencionei, nem todas as minhas leituras estão comentadas aqui. O texto já está longo e cansativo o suficiente. Se, mesmo assim, você quiser que eu comente sobre algum desses livros, deixe seu comentário aí que eu farei o possível (ou o que a memória permitir)!
eu gosto muito da palavra alemã "zufrieden" que quer dizer "satisfeito" mas que sempre eu leio penso "sofrido" (vai ver se satisfazer é passar por sofrimento)
Nossa, peguei o livro do Barbero hoje! Tô com ele aqui no notebook iniciando a leitura! Adorei a sua lista e já adicionei alguns na minha lista. Parabéns pelo aceite da Giselle na sua banca! Que maneiro!