Esse é o primeiro post após nossa migração da Revue para o Substack. Não se assuste, caro(a) assinante, nada mudou além do endereço. Infelizmente.
Como manda a tradição (iniciada há um ano), devo reservar o primeiro texto de 2023 para tecer breves comentários sobre os livros que consegui ler em 2022. Foi um ano meio esquisito porque tive que correr atrás do tempo perdido e várias dessas leituras acabaram sendo de ordem burocrática, para satisfazer algumas exigências do doutorado ou para outros trabalhos de natureza acadêmica. Por isso, reservo esse espaço apenas aos livros legais cujas impressões gostaria de deixar aqui registradas.
Antes de começar, porém, me chama atenção a intriga circular sobre pessoas e livros. Essa intriga, graças ao velho jargão “prefiro ler do que assistir Big Brother”, geralmente tem sua edição anual entre janeiro e fevereiro. Dessa vez, a crítica é sobre pessoas que, aparentemente, leem demais e colocam metas absurdas de leitura anual, chamando a atenção por já terem uma pequena pilha de lidos sem nem ao menos termos terminado de digerir as sobras da ceia de ano novo.
Não vou me estender muito, essa intriga costuma degringolar para discussões sobre o quanto os bookstans são xaropes, e aí eu até concordo. Eu percebo que os argumentos pró-livro que aparecem são peculiares e se concentram muito na leitura como um fim: os benefícios de ler, a suposta vantagem intelectual (já desmentida várias vezes) e o quanto os papéis cheios de palavra são uma fonte rica de “cultura”. Ora, eu não comecei a gostar de ler porque percebi que livros são bons. De fato, a maioria das pessoas, senão todas, começam lendo coisas meio... bobinhas. Harry Potter e Dan Brown não são fenômenos literários pela sua qualidade, eles se tornam populares por outros mecanismos que evidenciam o que, para mim, deveria ser o argumento central: as formas de sociabilização que o livro oferece, ou seja, a leitura como um meio, e não como um fim.
O Brasil lê poucos livros e isso não deveria ser uma constatação moral. Deveria chamar nossa atenção para o fato de que as sociabilidades que o livro poderia trazer, por aqui, são trazidas de outras formas. Eu comecei a ler quando adolescente porque os livros eram um assunto entre mim e minha mãe, e depois entre mim e meus amigos, e depois entre mim e minha namorada, e agora estou fazendo disso um problema de vocês também, leitores sagazes. Ler coisas significa poder falar sobre coisas. Nós até podemos gostar da comida pelo seu valor nutritivo, mas bom mesmo é dividir um jantar com a galera.
Perdão pela digressão, vamos ao que interessa:
A Vegetariana (Han Kang, 2007)
Poucas vezes na vida eu peguei um livro, abri, fechei e pronto, acabou o livro. A história que a autora coreana conta me prendeu de tal forma que eu recomendei essa leitura pra todo mundo. A Vegetariana narra sobre a bizarra vida de uma mulher que decidiu parar de comer carne, fato que desencadeou uma série de problemas com sua família e amigos próximos. Algo curioso que notei foi que, ao longo de toda a trama, essa personagem principal nunca denomina a si mesma como “vegetariana”, ela apenas diz que não quer comer carne. Esse adjetivo é dado pelos outros, que observam o fenômeno se desenvolvendo e parecem simplesmente não ter vocabulário para descrever o que se passa com essa mulher. E, bom, tem muito personagem interessante mas eu não quero estragar a surpresa. Leiam. É legal.
A Revolta do Público (Martin Gurri, 2014)
Esse livro rendeu uma resenha aqui no meu blog, então vou só deixar o link e passar para o próximo.
A Montanha Mágica (Thomas Mann, 1924)
Esse tijolão rendeu momentos muito prazerosos e me fez perceber que eu não entendo de mitologia grega o suficiente para pegar referências além do nome “Radamanto” (em minha defesa, meu repertório mitológico é melhor representado por Cavaleiros do Zodíaco, o filme Tróia e o joguinho Hades). Mas, de certa forma, o universo representado pelo sanatório Berghof lembra um pouco o submundo, visto que as pessoas que estão lá, assim como Hans Castorp (o personagem principal), sofrem de tuberculose e precisam ficar meio que… fazendo nada, esperando o tempo passar. E aí o livro é meio que sobre isso, sobre pessoas discutindo sobre a vida enquanto tossem e cospem sangue e tentam entender os movimentos políticos do início do século XX na Europa. Palavras que aprendi lendo esse livro, graças à incrível tradução de Herbert Caro: recalcitrância, escanifrado, pundonor, modorra.
Bônus: entrevista sobre A Montanha Mágica com o professor Jorge de Almeida.
Trem Fantasma: A ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva (Francisco Foot Hardman, 1988)
Essa pérola acidental foi uma leitura sobre a qual eu tive que fazer um seminário. Então eu já aproveito para deixar aqui minhas anotações e slides para quem quiser conhecer melhor o livro. Trata-se de uma obra baseada na tese de doutorado do autor, que hoje leciona na UNICAMP e, observando suas outras publicações, tem um grande interesse nos processos de modernização do Brasil e as formas de resistência política que deles resultaram.
Usando a documentação fotográfica da época, juntamente a notícias, diários e relatórios, Hardman conduz uma pesquisa histórica sobre a construção da Ferrovia do Diabo na floresta amazônica, e desloca o ponto de vista da narrativa para a força de trabalho contratada na época. Um valioso documento para entender como a modernização foi um fenômeno, no Brasil, que iniciou no imaginário do povo muito antes da presença tecnológica que, na passagem do século XIX para o XX, justificava tal imaginário.
Inimigas Naturais dois Livros: Uma História Conturbada das Mulheres na Impressão e na Tipografia (Maryan Fanny & outras, 2020)
Esse livro é resultado de uma iniciativa do Clube do Livro do Design e foi lançado no início do ano passado em português. 2022 foi um ano que me fez revisitar várias leituras sobre tipografia, uma disciplina que gosto muito, e acabei aproveitando para descobrir fontes alternativas sobre sua história. O Inimigas Naturais traz relatos e pesquisas sobre mulheres que se aventuraram nos primórdios da tipografia, quando o ofício se consolidava por meio de guildas de artesãos formadas, sobretudo, por homens. O gatekeeping masculino não impediu que as tipógrafas não apenas se apropriassem dos meios de impressão, como também os aplicassem para produzir materiais de protesto e de ordem subversiva (e muito bem-humorados, diga-se de passagem). A edição brasileira prima pela originalidade e reproduz os panfletos, cartazes e folhas-de-rosto impressos na época dos relatos, ou seja, ainda por cima é um tesouro visual.
A Grande Transformação (Karl Polanyi, 1944)
Caçar referências em artigos nos leva a lugares inusitados. Quando Polanyi publicou seu livro, ainda na primeira metade do século XX, a preocupação era com o fenômeno do crescimento dos movimentos fascistas pela Europa. Segundo o autor, há uma dinâmica impulsionada pelo domínio do mercado que, quando avança sobre áreas tradicionalmente não-mercadológicas, provoca um ímpeto reacionário na população. Líderes fascistas conseguem impor ditaduras com a anuência do povo porque representam uma espécie de “salvaguarda” de valores familiares. O livro é denso, difícil, demanda algumas releituras e não deixa muito claro, no fim, onde está a salvação, embora o autor trace uma diferença fundamental entre o socialismo e as demais formas de governo autoritárias que pesquisou. No último capítulo, Polanyi aponta para a chave da questão: é preciso que o governante saiba equilibrar o reconhecimento da liberdade, da sociedade e da morte (!).
Eu gostaria de poder articular as ideias do Polanyi, mas seu objeto é distante da minha pesquisa. Deixo aqui duas leituras complementares que gostei bastante: essa análise comparativa entre Hayek e Polanyi por pesquisadores de Economia da UFMG; e esse ensaio sobre a possibilidade de Foucault apresentar uma “continuação” para o tratado sobre autoridade governamental desenvolvido pelo Polanyi, de co-autoria de Danielle Guizzo, uma professora brasileira dando aula em Bristol (UK).
Expiração (Ted Chiang, 2019)
A grande conquista do ano foi conseguir reservar um tempinho para voltar a ler Ted Chiang. O bruxo da ficção científica retorna com mais uma coletânea de contos tenebrosos, um mais black mirror que o outro (na verdade, é o Black Mirror que é Ted Chiang, mas tudo bem). Acho que nenhum conto é ruim e eu não consigo escolher o melhor. Minhas menções honrosas vão para “The Merchant and the alchemists gate”, que tenta criar um cenário de paradoxo temporal na antiga Bagdad do império persa; “The Lifecycle of Software Objects”, um conto sobre pessoas criando vínculos emocionais com Digimons; e “Omphalos”, um divertido conto que se passa em universo no qual é possível traçar a data de criação do cosmos a partir dos objetos que trazem marcas de tempo estabelecidas em um “início”. A personagem principal é uma arqueóloga que encontrou árvores sem anéis no tronco, que seriam testemunhas da criação.
Bem-vindo ao Deserto do Real (Slavoj Žižek, 2001)
Caramba, eu tinha esquecido como o Zizek é confuso. Como é confuso e como é cheio de referências que eu nunca pesco. Mas esse livro, em particular, é até mais claro e direto ao ponto do que as outras obras que eu li dessa figura carismática fungadora. De fato, quando Zizek se debruça sobre um único assunto, em vez de tentar abraçar uma espécie de ontologia contemporânea sem direcionamento, as ideias parecem fluir com mais clareza entre suas palavras. O Deserto do Real é uma coletânea de ensaios sobre os atentados de 11 de setembro, nos quais Zizek analisa os atos de terrorismo sob sua perspectiva sociológica abastecida por Lacan e Hegel. Esse livro tem um sabor de vinho bem envelhecido por que foi lançado no mesmo ano dos atentados e as reflexões do filósofo soam bastante lúcidas ainda hoje. Meu destaque vai para o segundo ensaio do livro, “Reapropriações: a Lição do Mulá Omar” que traz uma curiosa comparação entre o Afeganistão e a Bélgica.
Ruído Branco (Don DeLillo, 1985)
Eu descobri que o Ruído Branco é uma espécie de leitura inspiracional em ementas de cursos sobre tecnologia e sociedade nos EUA. Aí eu fui ler, né! E depois descobri que a Netflix estava cozinhando um filme sobre esse livro, que foi lançado no dia 30 de dezembro. Coincidências.
DeLillo traz uma narrativa característica dos conflitos pós-modernos: a sensação insistente de paranoia, a crítica à sociedade de consumo, a falta de lastro para lidar com crises existenciais, o fato de crianças parecerem mais espertas que a maioria dos adultos e a completa descrença com as ciências e o avanço tecnológico. O livro tem passagens incríveis, o autor adora alfinetar acadêmicos: sempre que professores aparecem juntos, estão discutindo amenidades, falando putaria ou fazendo guerra de comida. Se EU fosse fazer um filme baseado no Ruído Branco, a cena de abertura seria o que, no livro, é o epílogo: Wilder, em seu triciclo, cruza uma avenida movimentada, em câmera lenta, enquanto as pessoas se desesperam nas beiradas da estrada. Por algum motivo, Baumbach deixou essa cena de fora e despachou para a audiência um filme estranho, sem muito nexo e que, na minha opinião, acaba não passando muito bem a mensagem geral da obra do Don. Mas a cena dos créditos com LCD Soundsystem ficou bem joia.
Obrigada por dividir as leituras, Boli - gosto muito dessas listas! Nunca tinha ouvido falar desse livro Trem Fantasma e parece demais pelo que você colocou nos slides, fiquei curiosa pra ler. Também achei a cena com LCD Soundsystem jóia. :)