Como selecionar os frios para a tábua de frios que você vai levar na Noite da Tábua de Frios com seus amigos
Ou: a anatomia de uma pesquisa de doutorado
Pensar nesse intervalo de quatro anos entre 2021 e 2024 traz memórias sobre um punhado de coisas: uma pandemia, os anos finais de um governo nas mãos do Comando Maluco do Dedé, uma Copa do Mundo embolsada pela Argentina, o tapa que Will Smith deu em Chris Rock durante a cerimônia do Oscar. É uma enorme e diversificada lista.
No meu caso, preciso adicionar mais um elemento ao rol: foram quatro anos que passei fritando meus aguerridos miolos em torno de um mesmo tema. Por isso, gostaria de, nos próximos parágrafos, compartilhar algumas impressões gerais sobre o processo de passar por um doutorado. Que tipo de coisa a gente estuda, o que esse processo significa em relação ao universo do Design, e que tipo de lições foi possível aprender (ou desaprender) nesses quatro anos.

Vamos supor que você se convença a fazer um mestrado ou doutorado. Seja qual for sua motivação, o importante é já pensar em um esboço ou uma ideia para uma proposta de pesquisa. Se você foi um desses alunos bons na graduação, que entendem como estruturar um problema, você provavelmente vai elaborar uma proposta interessante, com algum nível de aprofundamento inicial. De outro modo, você se juntará a mim e milhares de outros pós-graduandos que tiveram que elaborar uma proposta meio que a fórceps, preenchendo os requisitos básicos para se aprovada pela banca de avaliação.
Uma proposta de pesquisa precisa delinear os pontos básicos de um processo de descoberta: contextualizar os principais temas envolvidos, formular uma problematização, elencar os objetivos e a justificativa — o porquê raios precisamos investir tempo e dinheiro para pesquisar tal coisa. Feito tudo isso, a proposta também precisa descrever o método sugerido para a pesquisa. É difícil prever com clareza quais passos esse método trará ou qual será sua abordagem definitiva: para uma proposta, o delineamento do método carrega um propósito mais voltado a convencer os pares de que esse humilde candidato a uma vaga na pós-graduação tem uma certa noção dos meandros científicos da resolução de problemas.
Egresso da linha de pesquisa de Design de Sistemas de Informação, meu mestrado havia se concentrado em temáticas como infografia e gestão de design. Poderia ter optado por continuar com esses temas, aprofundando-os para um doutoramento? Sim. Mas de 2018 até então eu notei que estava cultivando interesses diferentes. De forma resumida, eu estava me interessando menos pelo “como” e mais pelos “porquês” do design.
É difícil uma proposta de pesquisa se manter a mesma após o início do doutorado. Conforme avançamos pelas aulas, vamos entrando em contato com referências e materiais novos que nos fazem reconsiderar vários pontos daquele nosso esboço de problema. Eu entrei no doutorado com uma proposta meio estranha: eu queria estudar como o design, enquanto disciplina, introjetava certos valores nesse grande e indeterminado conjunto de tecnologias que chamamos de “internet”. Sei que parece que estou tentando resumir algo mais complexo em poucas palavras, mas, pasmem, era meio que isso mesmo.
Bastante vago, incerto e imaturo. Pivotar de uma linha de pesquisa para outra requer uma certa requalibragem teórica. Minha primeira tarefa era testar se esse tema de pesquisa se sustentava. Conforme ia passando por orientações, lendo referências e tentando chegar a algum lugar, comecei a usar o Notion como ferramenta de organização. Eu fui montando uma “wiki”: criei um glossário dos principais termos que estava definindo para a pesquisa (discurso, arqueologia, genealogia e outras palavras que os leitores de Foucault gostam); fui criando páginas com reflexões, notas de livros e fichamentos. Na época, estava bastante inspirado pelos jardins digitais que acompanhava e queria muito ir fazendo alguma coisa parecida: deixar esses pensamentos publicados e ir construindo coletivamente uma problematização (spoiler: não deu certo).
A maior parte das coisas que escrevi, anotei e elaborei, nos momentos iniciais da pesquisa, ficou só no rascunho do caderno e nada foi para a tese porque, bem, eu não fazia a menor ideia do que era a minha tese até então. Essa é uma das grandes dúvidas que atravessa a vida do acadêmico: se o que estou fazendo é uma pesquisa ou não. E essa dúvida é insistente, a gente acorda pensando nisso e vai dormir ainda pensando nisso. É uma dúvida que faz parte do “fazer” durante um período de doutorado ou mestrado, porque grandes porções dessas experiências a gente passa travando batalhas internas: o que eu acho que estou fazendo versus o que eu acho que deveria estar fazendo.
Escolher um tema para a tese é um ponto de inflexão deveras importante. Esse tema nunca é muito bem definido desde o início, mas ele já serve como indicativo para algumas coisas: é algo que tem a ver com nosso trabalho, com algum gosto pessoal, ou com algum interesse de longa data. Há quem escolha temas por afinidade, por gostar muito de alguma coisa. Tenho genuína curiosidade sobre quem consegue se envolver por quatro anos construindo uma tese sobre alguma paixão ou algo que gosta muito. Meus objetos de pesquisa sempre vieram de lugares mais coléricos: tendo a me interessar por assuntos que me deixam aflito, indignado ou, mais objetivamente, pistola. Não sei se posso vender isso como um conselho, mas se apegar a temas pelo quanto eles me enfurecem é, sem dúvida, um dos fatores que não me fizeram desistir dessa jornada.
A internet me deixa muito chateado. Vou tentar resumir essa chateação em três eventos. Eu me considero um órfão do Google Reader, o agregador de feeds em RSS que reunia todos os blogs, sites e revistas digitais que eu acompanhava em um mesmo lugar. O Google Reader me deixava organizar leituras em pastas, me avisava quando tinha novidade na área e, o melhor, me deixava compartilhar essas leituras com meus amigos. O Google Reader foi desativado pela Google em 2013, pois feria o modelo de negócios da sua empresa-mãe: gerar faturamento por meio de anúncios em sites que precisam ser visitados, em vez de simplesmente terem seu conteúdo propagado para agregadores como esse (um cenário que, por sua vez, também está prestes a mudar). Com a completa tomada das redes sociais no cenário digital, a experiência de compartilhamento também adquiriu outro aspecto: tornou-se uma fonte de dados sobre preferências e desejos de consumo. Você não é mais o que lê, mas o que compartilha sem precisar ter lido.
Segundo evento: o Grooveshark era uma novidade meio insana. Antes do Spotify, Tidal e outros streamings musicais, a plataforma disponibilizava as obras dos artistas por um modelo que, mais tarde, se revelou um tanto obscuro. Sendo obrigados a encerrar suas atividades repentinamente no início de 2015, os caras do Grooveshark estavam sendo alvo de uma ação bilionária movida por gravadoras e produtores musicais do mundo inteiro. Aparentemente, o site funcionava na base da pirataria. Qualquer pessoa podia subir músicas para o streaming sem se preocupar muito com direitos autorais ou outras formas de compensação. A justificativa era meio óbvia: o Grooveshark surgiu como canal aberto para artistas independentes divulgarem seu próprio trabalho, mas a ausência de moderação e controle logo a transformou no point favorito de quem trabalhava na frente do computador e gostava de ficar ouvindo suas canções favoritas durante o expediente.
Esse momento deixou exposta uma lacuna cuja existência eu, até então, eu não estava percebendo. A ideia de “ouvir música” havia se tornado muito próxima, quase dependente, da internet. Antes de fechar de vez, o Grooveshark disponibilizou um link para seus usuários baixarem suas playlists. Foi então que bateu: minha coleção de músicas favoritas era apenas um arquivo CSV, inútil sem um programa para interpretá-lo. Uma lista com números estranhos, organizados de um jeito caótico. Dados em uma biblioteca digital que não me pertencia. Os donos dela eram o grupo de desenvolvedores que agora precisava acabar com a própria criação.
Como uma cidade que vai alterando sua topografia para receber rodovias, shoppings, estádios e parques, a internet também sofria alterações — algumas invadindo e modificando o quintal da casa virtual que eu, em teoria, estava construindo por aqui. O terceiro caso que estava me deixando meio puto é, obviamente, o Twitter.
Eu gosto do Twitter. Não necessariamente da plataforma (que hoje se chama X), mas gosto desse formato “epigramático” de escrita: frases curtas, pensamentos soltos, bobagenzinhas. Algo recorrente, que aparece nas seções de cartas dos jornais, coletâneas de poemas, provérbios regionais, lápides, one-liners de shows de comédia, e que encontra um terreno fértil e com poucas restrições na internet. Seja nos espaços para mensagens no nick do MSN ou em estampas espirituosas de camisetas, o tweet parece se consolidar como uma forma legítima de expressão escrita que, para nossa sorte, não está atrelada a temáticas ou suporte próprios.
A timeline de acontecimentos recentes não é tão complexa. Em 2022 o megaempresário e megadivorciado Elon Musk tentou fazer um movimento de aquisição violenta e lançou um bid de 44 bilhões para comprar o Twitter. Três meses depois, Musk muda de ideia, avisa que foi mal, estava doidão, e retira a oferta. Entra em cena o sistema de justiça dos EUA: acionado pelo board de diretores do Twitter, o processo teve como justificativa principal uma suspeita de que Musk estaria usando da própria influência para desestabilizar o balanço da plataforma e impulsionar o valor das ações que ele mesmo havia adquirido antes de iniciar as ofertas públicas de compra.
O que me pega mesmo é que o otário da história sou eu, que fiquei criando conteúdo de graça em uma rede que agora deve estar o utilizando para alimentar alguma inteligência pra lá de artificial. E conteúdo de qualidade, modéstia a parte! Um conteúdo que agora está soterrado no atoleiro digital que virou esse pequeno espaço da internet, cheio de robôs e usuários com avatar de terno e gravata falando de criptomoedas.
Perdão pela digressão, o assunto desse texto é a minha pesquisa de doutorado. Esses três casos, no entanto, ilustram um passo inicial de tal pesquisa. Uma referência importantíssima com a qual tive contato, no início dessa saga, foi o livro Cogitamus, do Bruno Latour. É nesse livro que o antropólogo sugere uma abordagem para pesquisadores iniciantes que estão interessados em seus métodos interdisciplinares. A ideia é ir pegando notícias, reportagens, recortes do dia a dia e ir montando um “Diário de Bordo”, no qual essas notícias vão formando uma espécie de mosaico. São recortes específicos do mundo real que não parecem ter, à primeira vista, nada em comum. Porém, conforme vamos relendo e revisitando esses recortes, emergem deles alguns híbridos.
O fenômeno híbrido, segundo Latour, é um evento que não tem bordas disciplinares bem definidas. São coisas que pressupõem que há uma certa disputa sobre um entendimento legítimo. Não que esse entendimento legítimo não possa existir, mas é porque o híbrido aparece como uma entidade que rejeita a “purificação” disciplinar. São fenômenos que precisam ser interpretados pela combinação dos seus aspectos tecnológicos, sociais, naturais e humanos. O buraco na camada de ozônio pode ser entendido como um híbrido: é uma manifestação geográfica de evento climático que se amplifica com a interferência da poluição causada pelos agentes químicos usados pelos seres humanos. O fenômeno híbrido deixa de ser tratado disciplinarmente e passa a ser definido pelas suas relações, pela ponte que faz (ou desfaz) entre esses campos de conhecimento. É um processo de provocação.
Resolvi ir juntando casos como esse do Grooveshark, do Google Reader e do Twitter com outras notícias que eu lia e colecionava sobre a internet. É bastante coisa, mas o objetivo de um Diário de Bordo não é reunir ou organizar todo o universo existente de textos sobre algum tema. Ele é apenas uma ferramenta que facilita um processo de saturação: pelo volume de objetos reunidos, padrões e recorrências começam a nos saltar aos olhos.
Essa coleção de causos internéticos é… diversa. Notícias sobre vazamentos de dados, invasões de privacidade e violações de direitos humanos em suas versões digitais compartilham espaço com histórias sobre estruturas algorítmicas e seus inerentes enviesamentos políticos, sobre como usar a internet para se divertir também é trabalho ou sobre reforço positivo na era das plataformas. Muitas vezes, o que define a etapa de uma pesquisa não é um suposto momento onde um fator X é encontrado, como uma caça ao tesouro, mas, simplesmente, o prazo. Em design, por exemplo, a etapa de pesquisa de referências costuma ter um prazo bem definido (ou então a gente fica eternamente catando imagens por aí). Eu decidi que ficaria até o fim do primeiro ano de doutorado indo e voltando com esse Diário de Bordo e, ao final, o que quer que tenha surgido seria o que eu carregaria comigo pelo restante do caminho.
O que eu não esperava é que, terminado o prazo, eu não necessariamente estaria carregando coisas novas: eu, na verdade, tive que deixar algumas coisas pra trás. Tive que aceitar que, provavelmente, minha pergunta de pesquisa não era a que eu queria fazer. Eu estava pensando no design disciplinarmente, como um conjunto fechado de técnicas e pressupostos. Para entender a internet, eu teria que, primeiro, abrir mão dessa orientação e tentar encontrar um nexo de entendimento mais preciso — mais interessante.
Um dos desafios de um programa de pós-graduação é conciliar as necessidades desses dois tipos de alunos que mencionei anteriormente. Os que já chegam com um projeto de pesquisa bem definido, com uma orientação epistemológica clara e um resultado esperado em mente terão os primeiros anos de um doutorado para refinar esse escopo, iniciar a coleta de dados para um primeiro momento de discussão, e talvez já encaminhar um piloto ou uma revisão bibliográfica que aponte precisamente as lacunas que outras pesquisas anteriores ainda não cobriram.
O segundo caso, composto pelos alunos que chegam com uma proposta mais aberta, terá que usar esses momentos iniciais para investigar permutações do interesse de pesquisa com problemáticas possíveis. Tais alunos terão que entrar em contato com a literatura básica da linha de pesquisa (quando você inicia um mestrado ou doutorado você precisa escolher uma linha de pesquisa, esqueci de avisar) para compreender de que formas as teorias contemporâneas ajudam a modelar uma estratégia de análise. Esse momento pode ser bem conflituoso: a gente se obriga a abandonar ideias, abrir mão de algumas hipóteses, tirar dos planos alguns passos mais ambiciosos. O grande objetivo é ter uma visão do todo: do início, do meio e do fim da pesquisa, e meu caso específico acabou parecido com o que algumas pessoas chamam de “modelo espaguete”. Vulgo, fui jogando as ideias na parede até ver qual delas ficava grudada.
(talvez tenha ficado meio claro que pertencer a esse segundo grupo é dor de cabeça, por isso eu sempre recomendo aos interessados em entrar em um mestrado ou doutorado que façam uma disciplina da pós-graduação como aluno externo. Absolutamente todas as pós-graduações das universidades públicas do Brasil abrem vaga nas disciplinas semestrais para alunos visitantes. Basta entrar no site do programa, descobrir a grade horária e disparar um e-mail pra secretaria com um sorriso no rosto).
Minha tentativa-e-erro foi considerar alguns estudos de caso a partir do Diário de Bordo. Eu estava bastante interessado em elaborar uma tese sobre como a concorrência da Uber não era apenas contra o serviço de taxi, mas o sistema de transporte público das grandes cidades: uma hipótese sobre como o aplicativo, enquanto manifestação do venture capital do norte global, servia como um dispositivo de corrosão para as escangalhadas tentativas de welfare-state do sul. Tentei elaborar um estudo a partir da Wikipedia, pensando sua interface como uma forma diferente de criar conhecimento coletivo (essa até rendeu um artigo). Tentei conectar a tradição pós-estruturalista, a partir de Foucault, com as pesquisas históricas do Design da Informação (que também rendeu um artigo bacana).
Foram algumas voltas que, embora estivessem rendendo boas discussões, não deixavam menos urgente um deblaterante fato: eu ainda não tinha uma tese e a data da qualificação estava se aproximando. A qualificação é uma etapa intermediária de uma pós-graduação. Trata-se de uma banca que vai avaliar o andamento da pesquisa conforme alguns critérios que podem variar de acordo com o que o colegiado de cada programa define. Pense na qualificação como uma “calibragem”: o pesquisador leva o que ele desenvolveu até o momento e os professores que estão avaliando irão sugerir mudanças, complementos ou, se os ventos do otimismo permitirem, irão mandar um “pode seguir”, significando que o pesquisador “pode seguir” fazendo o que estava planejando.
A qualificação é, geralmente, marcada no início do terceiro ano do doutorado. O recado é claro: você teve dois anos aí, recebendo bolsa, lendo artigos, indo pra aula. Hora de mostrar serviço. Faça uma apresentação de vinte minutos contendo uma introdução bem completa sobre sua pesquisa, expondo sua problematização, seus objetivos e sua abordagem metodológica. Ah, quanto mais bem detalhada essa abordagem for, melhor. Porque um método é composto das ferramentas de coleta de dados, dos instrumentos de análise e da estratégia de síntese, vulgo, o que você está buscando, como você se certifica de que encontrou o que buscava e como você organiza isso para apresentar para as pessoas. Na qualificação, é importante também expor sua fundamentação teórica: o conjunto de teorias e referências centrais que amparam esse seu método. Em outras palavras, quem são os autores para os quais você está “pagando pedágio” nessa estrada da pesquisa. O que mais esperam na qualificação? O estudo piloto, é claro. Uma demonstração de como esse seu método funciona. E é legal deixar um cronograma de próximos passos no fim.
Lembro desse dia, o início do segundo semestre do meu segundo ano de doutorado. Eu estava sem orientador (causos da vida), sem um problema definido (no sentido clássico do termo), e com um desenho mais ou menos preciso do método que eu queria seguir. O cenário não era dos mais bonitos. Nem cabelo pra arrancar eu tinha.
O doutorado inclui uma carga de créditos obrigatórios em disciplinas externas. Nessa época eu dei uma olhada no que a Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE), da UTFPR, estava oferecendo em sua grade horária. Por sorte, estavam abertas as inscrições para a turma de História da Técnica e da Tecnologia. Não estou exagerando quando digo que passar por essas aulas foi um momento de profunda reorientação e reorganização dos meus miolos. Tive que fazer um seminário sobre o livro Trem-Fantasma, o que me obrigou a parar tudo e ler (e depois reler) um livro sobre uma pesquisa histórica focada no impacto da tecnologia sobre o imaginário das pessoas. O semestre também rendeu um artigo jóia. Porém, a referência que mexeu comigo mesmo foi o artigo de David Edgerton com suas dez “teses ecléticas” sobre pesquisas historiográficas da tecnologia.
O que o autor faz, resumidamente, é explicar por que a história da tecnologia não pode ser confundida com a história da inovação tecnológica: enquanto esta busca traçar o surgimento dos novos artefatos que usamos, aquela tem como objetivo descrever a história dos artefatos que já estavam em uso antes. O que define a tecnologia, pois, é o uso que fazemos dela. No fichamento que fiz desse texto, escrevi uma observação no canto da página: o terreno arqueológico da adoção da nova tecnologia compreende os problemas derivados daquilo que já está em uso quando ela aparece e é adotada pela sociedade. Não sei muito bem o que eu tinha percebido, na época, mas o que se desdobrava dessa leitura ia ficando claro: eu havia achado uma proposta, uma “chave de entendimento” para a internet enquanto tecnologia a ser historicamente investigada. O que define a internet é o uso que fazemos dela, e o uso da internet se dá por meio de uma modalidade de interação que eu, enquanto designer, poderia lançar como hipótese: estudar a história da internet é, também, estudar a história da navegação.
Esse momento Ahá! deixou tudo mais claro. A partir daí, foi só “seguir o livrinho”. Eu estava estudando a navegação, então a tese passaria por capítulos dedicados a descrever essa metáfora enquanto objeto de pesquisa; passaria pelos pesquisadores que, antes de mim, dedicaram-se a descrevê-la, investigá-la e aprofundar o entendimento que temos sobre ela hoje; resultaria, enfim, em uma série de parâmetros de análise para o corpus da minha pesquisa, isto é, o conjunto de materiais que eu analisaria em busca desse dado: as evidências dessa história que eu tentaria descrever.
A coletânea de coisas que compõe o corpus da pesquisa reflete, em grande parte, as limitações do pesquisador. Eu já tinha um tema (internet), um recorte (navegação na internet), um método (pesquisa histórica) e sua abordagem (o conjunto de autores e referências da fundamentação teórica). Faltava uma pilha de objetos que eu poderia colocar num carrinho de mão e levar até minha orientadora1. Para uma pesquisa histórica, o corpus compreende os acervos aos quais temos acesso, ou os objetos cujo conjunto representa possibilidades de leitura e interpretação. Em muitos casos, o tal acervo ainda não existe, ou existe em estado de projeto: precisa ser reunido, classificado, organizado. Estava suspeitando que esse teria que ser meu próximo passo: qual é o corpus de uma pesquisa sobre a internet?
O historiador Michael Galgano, juntamente aos seus coautores, escreve que muitos temas de pesquisas históricas sofrem de uma carência crônica de fontes e acervos. É muito difícil saber como viviam os cartagineses, por exemplo, porque suas cidades foram completamente destruídas pelos romanos, seus livros foram queimados e seus registros desapareceram. A história que sabemos desse povo é narrada por fontes romanas e isso a torna um tanto enviesada, pouco confiável. Do outro lado, existem também temas sujeitos a uma profusão de fontes. Registros são volumosos que chegam a se contradizer; miríades de documentos e materiais que levariam anos e anos para serem catalogados e estudados. Temáticas mais próximas, contemporâneas, geralmente sofrem desse problema: os acervos são tão grandes que estudá-los se mostra uma tarefa sisífica, sem limites definidos. Adivinhou quem concluiu o mesmo que eu: a internet se enquadra nessa categoria.
É impossível estudar a história dessa tecnologia, então? Não, porque nesses casos, o elemento balizador do corpus da pesquisa não é o limite do próprio acervo, mas o lugar de fala (ou de dúvidas, nas palavras de Renán Silva) do pesquisador. Em outras palavras, parte da minha qualificação seria demonstrar minha estratégia para formatar um corpus que satisfizesse o problema de pesquisa que eu estava propondo. Se eu tinha uma estratégia? Oras, quem me conhece sabe que eu sempre tenho uma estratégia2.
Spam persists and diversifies because we are living through a major, complex transition in the constitution and management of our own attention, a transition moving faster than our governance, our metaphors, and our software can keep up with. (Finn Brunton, 2013)
Um procedimento clássico da pesquisa histórica é a revisão historiográfica. Em síntese, esse procedimento envolve a busca por fontes secundárias, isto é, as teses e monografias de historiadores que já dissertaram sobre os temas de nosso interesse, seguida pela leitura crítica desses materiais e análise do seu conteúdo. O objetivo de uma revisão historiográfica é detectar tendências, lacunas ou simplesmente a orientação geral da literatura que existe sobre os tópicos em questão. Na excelente revisão que a professora Isabel Campi faz sobre a historiografia do design, por exemplo, ela discute como as definições formais de “Design”, enquanto atividade industrial, deixam produções artesanais ou atividades fora desse enquadramento invisibilizadas nas histórias da disciplina.
Se um acervo sobre as tecnologias da internet se mostrava virtualmente infinito, um conjunto menor de materiais, composto pelos livros contendo pesquisas históricas sobre a internet, já soava um tanto viável. Comecei a buscar esses títulos e iniciei a montagem de uma lista com candidatos à revisão. Em um mundo ideal, eu leria todas as fontes secundárias sobre a história da internet. No mundo real, porém, esse recorte está sujeito a limitações: cronograma, acesso aos livros, linguagem (desculpa, internet da China, você ficou de fora da minha pesquisa) etc. A lista inicial tinha 38 livros. É aí que entra a importância da qualificação, porque se você chega na metade do terceiro ano do doutorado falando que quer ler 38 livros, os ares começam a ficar carregados de suspeição e descrença. Adotando alguns critérios de refinamento, chegamos a uma lista de 20 obras para compor o corpus inicial da pesquisa.
Não vou me prolongar sobre esses 20 autores aqui, embora tenha gostado muito dessa etapa no meu método. Na verdade, a revisão historiográfica que conduzi sobre a internet rendeu algumas análises bastantes pertinentes — e também alguns diagramas legais. Por exemplo, eu precisava organizar esse pequeno universo de referências de alguma forma que possibilitasse encontrar a navegação, esse dado crucial, em meio às fontes primárias usadas por esses autores. O que me ocorreu (mais um certified aha! moment) é que cada autor, à sua maneira, tratou de “localizar” a internet em uma coordenada teórica junto a ideia de “tecnologia” enquanto temas principais. Ou seja: para uns, a internet representava um conjunto de tecnologias autônomo, merecedor de uma história vertical sobre suas origens e desenvolvimento, e para outros a internet poderia ser uma “tecnologia filha”: uma série de artefatos que “nasce” a partir de outras tecnologias maiores, como a rede de telefonia ou a computação do século XX.
Tomei a liberdade de nomear essa análise como “espectro de granularidade tecnológica”. Alguns autores estão vendo a internet de perto, com mais granularidade (seu funcionamento, suas camadas, seus personagens), e outros de longe — como mais uma tecnologia em meio a outras tantas:
Outra visualização resultante foram as ligações entre essas obras: quem citou quem. Como avançar por uma floresta com árvores marcadas com setas que dizem “é por aqui” ou “não vá por ali, tem jaca caindo na cabeça”, esses autores formam redes de influência, criticam e são criticados, compondo uma historiografia diversa, extremamente autoconsciente e que se permite revisar de diversas formas.
Se você está procurando aquela referência clássica, sólida e que se mantém incólume na historiografia, então Inventing the Internet, de Janet Abbate, seria minha recomendação. A não ser que você seja do mundo do design. Nesse caso, prefiro que você dê uma chance para Net Work, da professora Helen Kennedy. Se estiver querendo ler uma história divertida, empolgante, então SPAM, de Finn Brunton, seria a melhor escolha. Mas acho que o meu preferido mesmo é The Net Effect, de Douglas Streeter. Não só pelo conjunto da obra, mas porque, desses 20 autores, foi o que mais precisamente dedicou páginas para descrever a experiência da navegação.
The internet of the 1990s may have been less like the steam engine or the radio and more like spices and beaver pelts. What the internet offered, however, was not so much fashions for decorating our bodies or our food as fashions for clothing the self. (Douglas Streeter, 2011)
Nesse outro gráfico eu faço a classificação dos que eu mais gostei de ler até as leituras mais arrastadas:

Esse ranking, é claro, não foi para a tese. Nesses passos todos do método a gente vai descobrindo coisas e levantando dados que, por mais que sejam legais ou interessantes, acabam não compondo o formato final da pesquisa. Essa é uma boa mentalidade de pesquisador: anote e registre tudo, mesmo que pareça exagero. A pesquisa final — seu relatório — é uma “destilação” de um material bruto sobre o qual os leitores mal ficam sabendo, muitas vezes.
Até porque, a revisão historiográfica era apenas uma etapa, e não o objetivo do estudo. Enquanto lia essas obras, eu também ia aplicando algumas chaves de interpretação para “pescar” a tilápia que realmente me interessava: os documentos e artefatos mencionados para invocar ou, pelo menos, aludir às manifestações da experiência da navegação ou algum de seus componentes constituintes. Consideramos essas manifestações, pois, como as “poéticas” do que poderia ser navegar, em nosso já ampliado entendimento do fenômeno.

Essa foi, portanto, a maneira pela qual reunimos um acervo de objetos para compor o corpus da pesquisa: fontes primárias extraídas da leitura de uma seleção de fontes secundárias. Esse acervo, bem como detalhes da leitura de cada obra da historiografia, estão disponíveis para visitas em bolivarescobar.notion.site/acervo. O período pós-qualificação, que compreendeu o ano de 2024 inteiro, foi dedicado a finalizar as leituras da historiografia, catalogar os artefatos selecionados e elaborar uma discussão sobre tudo isso. Aos que quiserem se aventurar pelos detalhes e meandros da análise, minha tese está publicada, disponível no repositório da biblioteca da UFPR.
Want to know where the action in a culture is? Watch where new language is turning up and where the lawyers collect, usually in that sequence. (Steward Brand, 1988)
Quando retorno para essas memórias, para os dias de leituras e anotações sem fim, eu tento também me recordar das motivações, daqueles pressupostos coléricos que me empurraram para a temática da internet. Talvez meu interesse em sua história não passasse de um lamento, a triste constatação das mudanças pelas quais vem passando esse lugar que tanto gosto, onde fiz amigos, encontrei minhas músicas favoritas, onde pude descobrir o universo dos filmes, onde pude navegar e me divertir pelo simples ato de navegar. “Por que as coisas se tornaram o que elas hoje são” é uma pergunta que pode resumir toda essa empreitada.
Um outro resultado de qualquer pesquisa longa como essa está na figura do próprio pesquisador. Passar por um mestrado ou doutorado é um processo transformativo, de autodescoberta. Se, nos momentos iniciais, o pesquisador compreende seu lugar de fala, nos momentos finais esse pesquisador precisa se re-localizar, avaliar o quanto suas crenças e objetivos estão presentes naquele resultado de pesquisa que está sendo apresentado. Nas humanidades isso é comum porque todos partimos do pressuposto que fazemos parte do universo sendo estudado.
Saber que nosso uso da internet é profundamente impactado caprichos das piores pessoas do mundo e suas plataformas me frustra, e me faz querer acreditar que minha pesquisa pode ser uma contribuição ínfima, mas suficiente para entendermos que esse uso também é nosso. Há uma boa parte que cabe a nós, esses seres conectados agora 24 horas por dia, na arte de observar o cenário virtual como uma construção coletiva, como algo que pode ser bom e que pode servir a nós muito mais do que a eles. Quem sabe pensando na navegação como algo que se constrói, e não que apenas se executa, poderíamos criar focos de resistência mais incisivos e tornar a internet algo mais internético.
Há um ditado que circula pelo nosso programa de pós-graduação (e por outros também, imagino): o pesquisador precisa ver sua própria obra como um salame. Você não serve um salame inteiro. Ele precisa ser cortado em fatias, porque cada uma dessas fatias é um pedaço da pesquisa. Em sua totalidade, ela não diz tanto quanto cada fatia, individualmente, comunica. São fragmentos, desdobramentos e pontos de contato adaptados ao público, que comunicam o valor dessa pesquisa e repassam suas contribuições. Cada artigo escrito, cada participação em evento, cada aula preparada sobre teses e dissertações são isso: pequenas fatias sendo servidas para os que estão participando da grande Noite da Tábua de Frios da ciência. Essa postagem aqui nessa newsletter, também.
Expediente
Pois é, rapaziada, quase um ano sem postar aqui. Do nada, apareço com textão sobre a tese. Eu não sei muito bem por quê escrevi isso, mas era algo que eu precisava tirar do caminho. Esse processo todo deixa a gente meio atordoado. Reler e revisitar vai nos ajudando a digerir tudo isso, a ir vendo através da poeira enquanto ela baixa.
Essa reta final me obrigou a sacrificar algumas coisas. O blog acabou entrando em um hiato forçado, mas juro que fui anotando algumas ideias de texto para desenvolver no futuro. O sonhado ritmo de dois posts por mês volta a ser o objetivo. Meus sinceros agradecimentos a quem continua por aqui.
A professora Luciane Fadel, da UFSC, aceitou assumir essa orientação alguns meses antes da minha qualificação. Com mais fé na minha pesquisa do que eu mesmo, me incentivou a fechar os capítulos da tese e foi comigo até o final dessa odisséia. Muito obrigado, profe!
Eu nem sempre tenho uma estratégia.
Algum comentário engraçadinho como teria no Twitter sobre como você usou erroneamente o 'literalmente' na foto do "Literalmente eu".
Texto a ser revisitado para quem está querendo entrar no processo da mesma forma, sem muito saber os porquês
Ei Boli, muito obrigada por dividir esse processo! Quero voltar em breve pro texto para explorar com mais calma, olhar melhor também o Notion que você criou! Achei uma leitura um pouco perigosa: deu vontade de me enfiar em um processo similar de estudo. :)