Quatro métodos para calçar os sapatos, na ausência completa de um dispositivo prolongador de braços
1. De pé
Talvez o mais perigoso dos métodos, utilizado apenas em situações de risco (e.g. precisar calçar os sapatos rapidamente para ir brigar com alguém da vizinhança; precisar remover os calçados para arremessar em algum inseto ou mamífero de pequeno porte etc). A posição “de pé” obriga o(a) calçador(a) a curvar-se e depositar todo o peso do corpo em uma só perna, gerando dois pontos de grande tensionamento, o qual pode perdurar por mais de um minuto. As sequelas incluem hérnia de disco, deslocamento lombar (espondilolistese) e cãibra. Amarrar os cadarços de pé pode ser uma tarefa singularmente complexa, obrigando o sujeito a prostrar-se de joelhos ou ter que se valer de uma determinada quantidade de capital social para solicitar que alguém os amarre para si.
2. Sentado
Certamente o método mais popular, visto que qualquer sólido de tamanho médio pode servir como assento improvisado*. Esse método gera apenas um ponto de tensão na região sacra, mas que não deixa sequelas a curto prazo. O(a) calçador(a) pode usar de criatividade e empregar um dos joelhos como apoio para o pé da perna oposta, ou até mesmo deixar ambos os pés no nível do solo, aproximando a cervical para executar as manobras. Há ainda a estratégia subversiva que consiste em permanecer de pé e usar o sólido não como um banco, mas como um apoio para o pé*.
* Há de se conferir antes se o sólido não é algo como, por exemplo, uma obra de arte.
3. Deitado
Bastante raro, este método é mais comumente observado entre grupos sociais específicos, como as crianças. Consiste em deixar o corpo na posição horizontal e, de alguma forma, aproximar os pés das mãos do(a) calçador(a), gozando de relativa liberdade gravitacional. O aparente relaxamento, entretanto, vem a custo de uma alta tensão na cervical, visto que a manobra utilizada para aproximar os olhos dos cadarços exige que o pescoço se desloque para cima. Esse é um método inovador no sentido de permitir que se calcem ambos os sapatos ao mesmo tempo, mas demanda um planejamento maior para a conclusão do processo, do contrário o(a) calçador(a) corre o risco de permanecer deitado(a) para sempre.
4. Guindaste
Registrado uma única vez na história, este método consiste em projetar e implementar um mecanismo que, por meio de um sistema de polias e contrapesos, suspende o(a) calçador(a) por alguns segundos, de forma segura e com ajuda de tiras ergonômicas. Em estado de completo relaxamento corporal, o indivíduo é descido em direção aos sapatos, os quais se encontram em um suporte específico e inclinados a um ângulo tal que os pés do calçador conseguem deslizar suavemente para o seu interior. Por esse método, o calçamento é realizado de forma rápida e sem exigir quase nenhum movimento muscular, contanto que o guindaste seja devidamente conectado a uma fonte de energia como uma caldeira a vapor ou a rede elétrica da cidade. O inventor do método, Teodoro dos Esteves1, chegou a submeter a papelada para o escritório central de Patentes e Propriedade Intelectual do oblast de Minsk, na cidade de Molodechno (onde hoje fica a Bielorrússia), entretanto, no terceiro teste público do artefato, um erro de 2 graus e meio no ângulo de posicionamento dos sapatos ocasionou uma colisão direta na falange distal, o que lhe custou grande parte dos movimentos da perna esquerda e subsequente engavetamento da ideia.
Esse pequeno texto foi publicado na quarta edição da revista Caça & Pesca, uma publicação realizada pela Contravento Editorial que busca, sobretudo, reunir e divulgar escritos de vanguarda. O editor, Natan, foi o mesmo que nos convenceu a lançar o livro da jojoca, e, por sorte, parece não se importar muito em publicar alguns disparates meus em suas páginas.
Considere manter acesa a chama da Caça & Pesca adquirindo alguns exemplares ou até mesmo assinando-a para receber um novo número a cada dois meses no conforto do seu lar. Para que isso seja possível, basta interpelar o editor pelo sistema de mensagens do Instagram. Volta e meia, se você não tiver muito cuidado, poderá acabar se deparando com meu nome entre as páginas.
O nome original desse personagem era “Sergei Ivanovich Volkova”, uma aliteração genérica de nomes populares russos. Quando mandei a primeira versão do texto para Natan, editor da revista, recebi como sugestão o seguinte comentário:
parece que este nome poderia conter alguma piscadela para os nerds e eruditos de plantão. Quem sabe uma tradução ao pé da letra, como Raimundo Ruço (Raymond Roussel), Segismundo dos Prazeres (Sigmund Freud), ou talvez anagramático, tipo um suposto grego pré-homérico chamado Thamos Niodes.
Indignado pela sugestão, imediatamente me pus a refletir sobre traduções de nomes famosos. Lembrei de poucas. Em uma determinada edição brasileira mais antiga de Assim Falou Zaratustra, o nome que assinava a obra aparecia como Frederico Nietzsche. Lembrei que “Guilherme” é uma versão latina do nome “William” (a aproximação funciona se você lembrar do nome germânico Wilhelm — lê-se “uil-relm”). Fora tais exemplos, sofri para resgatar qualquer outra referência da memória. Pra ser sincero, eu não estava sabendo nem como proceder minha pesquisa: deveria buscar pelo quê exatamente, versões aportuguesadas de nomes estrangeiros? Escrivães de cartórios nacionalistas?
Foi então que me dei conta de que poderia recorrer a uma dessas ferramentas de inteligência artificial para me ajudar com essa difícil tarefa. Afinal, até então ela havia sido útil para me ajudar sobretudo com algumas traduções pontuais e normalização de referências. A seguir, alguns trechos do meu diálogo com a máquina:
Incapaz de fazer as engrenagens da Artificial Intelligence trabalharem ao meu favor, apelei para a ideia idiota que achei que a máquina seria capaz de superar: traduzir Fyodor Dostoievsky para “Teodoro Dos Esteves”. O editor não reclamou mais e acabamos publicando isso aí mesmo.
Dostoibróvski é bom, vai