Uncanny Tales of Academia do Claudião
O espaço acadêmico é sempre palco de muitas reflexões.
Quando decidi entrar para a vida da puxação de ferro, o centro de Curitiba oferecia várias alternativas para quem estava em busca de um espaço para a prática da atividade física. Perto de onde eu morava, nas alturas da rua Mateus Leme, existia um estabelecimento chamado Personal Gym: uma dessas academias de bairro, nada muito grandioso, mas com recursos suficientes para marombeiros dos mais variados espectros físicos praticarem suas rotinas.
O dono desse espaço se chamava Cláudio. Cláudio era um indivíduo musculoso, careca, mal-encarado, fielmente atrelado aos estereótipos. Pelas paredes da academia, exibia algumas fotos dos seus tempos de competição de fisiculturismo expostas ao lado de troféus e medalhas. Algumas pessoas, incluindo eu, o chamavam de "Claudião", dado o seu porte avantajado. Entretanto, foi em meados de 2014, durante a campanha das eleições, que eu descobri que seu apelido oficial era "Boca de Lata". A alcunha, advinda dos brilhantes brackets do seu aparelho ortodôntico, foi o nome de guerra usado em sua campanha para deputado estadual pelo Partido Ecológico Nacional (PEN). Sim, eu também não sabia que esse partido existia.
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Claudião Boca de Lata não conquistou o cargo, mas isso não evitou que, enquanto me passava instruções para o manejo correto do aparelho extensor de pernas, me explicasse brevemente suas propostas de campanha: combate à corrupção e melhorar, de uma forma geral, a vida das pessoas. O que realmente preocupava o Boca de Lata era a rápida ascensão das chamadas academias low cost, caracterizadas pelas franquias que se espalhavam pelas capitais, como a Bluefit e a Smartfit. Um conceito simples por trás de um modelo predatório de negócios: academias modernizadas, com espaços amplos e mensalidades muito baratas, que compensavam os custos pela quantidade de pessoas socadas lá dentro correndo nas várias esteiras disponíveis.
Enquanto ainda era seu cliente, contabilizei uma série de momentos memoráveis na academia do Claudião. Sou portador de lordose e membro vitalício do clube da escoliose, então, por recomendação ortopédica, sempre tive que me policiar muito em termos de postura e carga dos exercícios. Tentei deixar isso claro para os instrutores do Boca de Lata. Um deles, ao me observar em uma das minhas primeiras sessões de supino, disparou um alerta: "cuidado que está torto. Vai crescer só a tetinha da direita".
Em outro momento, Claudião confessou que estava enfrentando problemas com a justiça. Um aluno seu decidiu processá-lo após ser chamado de "abobado". Tal aluno corria na esteira calçando sapatos, machucando os próprios pés, e não os confortáveis tênis que Claudião Boca de Lata gostava de recomendar. Brigas com alunos encrenqueiros ou sócios com comportamentos questionáveis eram frequentes. "Tem gente que vem aqui e fica de olho nas meninas. Esse animal que eu mandei embora nem carro tinha e achava que podia com qualquer uma", me explicava Claudião, relatando sobre a expulsão de um aluno que, embora frequentador das antigas, não conseguia segurar a boca fechada ao avistar um rabo de saia. Ou de legging, mais provavelmente.
O apogeu das encrencas judiciais de Claudião aconteceu em um dia no qual, por capricho do destino, tive a sorte de ser testemunha ocular. Era segunda-feira, 11 de abril de 2016. No fim da tarde, logo após iniciar meu treino, uma equipe de carregadores, acompanhada de um agente de justiça, invadiu o recinto e começou a recolher os aparelhos. Como eu sei exatamente a data e o horário? O resgate desse registro está no Twitter:
"Evento aleatório do dia: a academia fecha, com direito a advogado e equipe d carregadores levando os equipamentos embora, durante meu treino" — twitter.com
Nesse dia, meu treino acabou um pouco mais cedo, já que os equipamentos necessários se encontravam na caçamba do caminhão que os oficiais de justiça alugaram para confiscar os bens do Boca de Lata. A academia ficou fechada por um tempo e reabriu em novo endereço, algumas boas quadras mais longe da minha casa. Isso me obrigou a adotar a bicicleta como transporte até a nova localização: entre chuvas, horários bizarros e trânsito perigoso, minha vontade era a de dispensar os serviços de Claudião e me render à Bluefit do shopping. Assim o teria feito, se já não tivesse acertado um ano inteiro de mensalidades por um preço reduzido.
Chegando no novo espaço, me deparo com as evidências materiais do estilo pragmático de resolução de problemas do Claudião. Afixadas pelos espelhos da academia, placas com os dizeres "Se você é corno, não guarde os pesos" ameaçavam a honra dos frequentadores do espaço:
Um problema crônico em academias por todo o mundo são as pessoas que se esquecem de devolver os pesos após utilizá-los. Esse problema cresce em complexidade, conforme as cargas aumentam, e geram um prejuízo social intenso a partir do momento em que pessoas com músculos menos treinados precisam reutilizar aparelhos que ficaram configurados para os monstros movidos a whey e hipercalóricos. Claudião considerou que a maneira mais fácil de resolver essa contenda seria apelando para o senso moral do indivíduo, resgatando a culpa católica pelas consequências da cobiça da mulher do próximo (perceba que "corno" está no masculino. Trata-se de um recado endereçado aos homens).
Nunca vi um peso fora do lugar na academia do Claudião. Ninguém quer ser corno. Ser traído é um fardo pesado. Dante reservou o último círculo do inferno, o ponto mais gelado e distante do paraíso, para os traidores. Meter o chifre é mais grave do que assassinar alguém? Desde o décimo mandamento sobre a cobiça da mulher do próximo até a Divina Comédia, parece que o corno é posicionado de forma especial, quase como um pilar da sociedade. Imagino que, na baixa idade média, enquanto novas formas de legitimação do poder estavam surgindo pela Europa, considerar a traição como um crime tão grave não deveria ser algo tão estranho. Entre punhaladas nas costas, casos extraconjugais e decepções amorosas, reinados inteiros poderiam ser deixados em ruínas.
Antes da consolidação dos Estados modernos, das repúblicas e suas estruturas de poder separadas em esferas próprias, a ideia da legitimação de um rei ou de um governante passava pelo quanto seus seguidores eram fiéis a ele. O poder, por muito tempo, dependeu de acordos, casamentos, juramentos. Inclusive por isso que a época conhecida como Renascimento é tão lembrada pelo florescimento artístico e investimento em pinturas e esculturas pela Europa: a representação iconográfica de líderes, personagens religiosos e posses eram formas de criar legitimidade.
Mas não podemos deixar de inverter a lógica e investigar mais a fundo. Dante considerava a traição como o mais grave dos crimes porque ela de fato o era, ou porque ele sofreu alguma traição e quis se vingar em seus escritos? O poeta florentino foi acusado, no ano de 1302, de praticar corrupção e enriquecimento ilícito durante seu tempo de atuação como diplomata em Roma. A sentença final foi o exílio, decretada pelo tribunal de Florença e encarada como uma traição por Dante: caso ele decidisse por retornar à cidade, seria levado à fogueira pela inquisição. O restante da vida que Dante levou em exílio foi sua época de maior produtividade: a Divina Comédia foi publicada em 1320, um ano antes de sua morte. Recentemente a câmara dos vereadores de Florença revogou o exílio de Dante. Como ato simbólico, a partir de 2008, o poeta passou a não mais ser considerado um criminoso pela cidade.
O dilema filosófico está entre aceitar que repousa no conceito do corno um pesado julgamento moral, suficiente para estigmatizar um indivíduo; ou se Dante Alighieri e Claudião, a partir do emprego do conceito da traição em seus respectivos contextos, ajudam a legitimar sua importância, atrelando-o a pecados graves como a desorganização dos pesos em uma academia. Quem sabe se um chifrudo valente, no ímpeto de questionar o status-quo acadêmico, resolvesse deixar os pesos jogados de propósito, com orgulho dos próprios chifres, assim como os cantores de sertanejo universitário o fazem ao rechear suas melodias com lamentos de traição e superação. "Ser corno é bonito, ser corno é humano. Vote em um candidato corno". Em tempos de pós-modernidade, talvez o corno já nem esteja mais tão atrelado aos traídos do lago gelado de Cocytus: é possível que o termo tenha se desprendido, ganhado significados próprios. O corno já é a conotação de algo maior, mais grave que uma traição. Você pode levar uma facada nas costas e não ser corno, já não é mais um pré-requisito. Na dúvida, eu sempre guardei meus pesos.