Microtratado da transfiguração da estranheza
Ou: Formulário de Candidatura para Comissão do Orçamento Participativo da Invasão Extraterrestre
Uma das principais causas de morte é tentar fazer duas coisas ao mesmo tempo. Repare. Na maioria dos acidentes que se tem notícia, mesmo os domésticos, com poucas fatalidades, encontra-se no cerne do fenômeno a húbris do indivíduo que tentou ocupar sua massa encefálica e seus músculos com mais de uma tarefa simultânea. Mexer no celular enquanto dirige; tentar consertar alguma coisa no teto enquanto se equilibra em uma escada; atravessar a rua enquanto olha distraído para algum objeto voador não-identificado no horizonte.
O segredo para uma vida longeva, portanto, seria contentar-se em fazer uma coisa de cada vez. Para chegar ao centésimo aniversário, basta enfileirar suas tarefas diárias de modo a nunca provocar sobreposições: desligar a TV enquanto frita um ovo (e assim jamais causar incêndios). Não usar fones de ouvido para escutar músicas ou podcasts enquanto corre na esteira (eliminando o perigo de tropeçar e ser engolido pela máquina). Não equilibrar filhos ou animais no colo enquanto declara o imposto no computador. Não escalar montanhas carregando materiais explosivos. Tentar sonhar apenas enquanto dorme, e não acordado.
O mundo dos vivos, entretanto, cria obrigações que tornam a simultaneidade performática não apenas inevitável, mas praticamente uma virtude. Chega a ser impossível encontrar alguém que não esteja fazendo duas ou três coisas ao mesmo tempo, porque, embora não percebamos o risco envolvido, fazer várias coisas nos deixa felizes e preenchidos de espírito. Conversar com um amigo fica melhor com uma cerveja ou chopp repousando sobre a bolacha entre o copo e a mesa. Passar roupa sem a TV ou o rádio ligados? A televisão sobrevive graças a sua capacidade de transmitir programas cujos roteiros nos permitam acompanhá-los deixando livre mais da metade do aparato cognitivo. É assim que as baleias dormem também, desligando uma metade da cabeça e deixando a outra responsável pela respiração. Há quem conheça trabalhadores de diferentes segmentos que preferem conduzir seus afazeres enquanto sob efeito de entorpecentes. Fazer coisas ao mesmo tempo é reconfortante. É mais rápido. Prático. O camaleão mira um olho para cada lado para ver mais coisas ao mesmo tempo. É o normal desse planeta. Mas é o que mata.
Nesse ímpeto tanático, resolvi levar um vidro de azeitonas em conserva para comer enquanto tomava banho. Estava levemente seduzido por uma imagem que encontrara na internet há tempos, dessas que a pessoa imediatamente clica com o botão direito e salva: alguém nos Estados Unidos teve a ideia de amarrar um saco plástico com alguns litros de vinho na parede do box. É para se embriagar enquanto toma banho. Ver aquele saco cinza grudado com silvertape nos azulejos carimbou minha mente. Chama-se lifehack: quando você faz duas coisas ao mesmo tempo, mas, em vez de morrer, acaba ganhando mais vida. Acoplado ao saco, uma mangueira levaria o fermentado de uvas até a boca da pessoa que, ao mesmo tempo, poderia lavar o cabelo, os pés, a virilha etc1. Todo um universo se abria para mim. O plano das azeitonas funcionou: em um “ponto cego” ao qual as águas do chuveiro não chegam, as frutas (sim, azeitona é fruta) eram consumidas enquanto eu lavava meu sovaco e outras partes.
Há quem ouça música enquanto se banha. Há quem já aproveita para escovar os dentes. A operação azeitona, entretanto, revelou falhas operacionais. Eu tive que deixar os caroços chupados junto às azeitonas ainda inteiras, mas não gostei muito do aspecto da coisa: ia se formando uma sopa dantesca com a água que respingava junto aos folículos de sabão de xampu. Me senti péssimo, um fracasso. No banho do dia seguinte, o plano é executado mais uma vez, com acréscimos de complexidade. Levei um compartimento extra só para os caroços, e outro, com tampa, para a azeitona. Agora, o projeto precisava de uma revisão espacial. Comecei a confabular sobre uma reforma no banheiro, prevendo um box capaz de não apenas comportar a estrutura necessária para consumir azeitonas, mas também uma tábua de frios e, por que não, o tão sonhado vinho, mas servido em taça, não em uma mangueira de posto de gasolina. Talvez já incluir um frigobar para deixar tudo armazenado ali, permitindo o consumo de cerveja durante o banho também. Em uma inversão de lógica, talvez mais fácil seria instalar um chuveiro na cozinha mesmo?
Escrevendo sobre isso, agora, percebo a estranheza da ideia. Que incognoscível é perturbar o momento privilegiado do banho fazendo mais coisas ao mesmo tempo que não sirvam para, diretamente ou indiretamente, potencializar a limpeza do corpo. Além de aumentar o risco de morte, minhas azeitonas estavam apenas me fazendo perder tempo, gastar mais água, consumir sabão pela boca. A estranheza do ato se torna incômoda2. Se os extraterrestres estiverem nos monitorando e perceberem que fazemos esse tipo de coisa no banho, eles podem acabar decidindo pela intervenção.
O presidente atende o telefone. A voz que sai da máquina é a de uma assessora. Em tom apressado, ela trata de repassar as informações-chave da ocorrência: de fato, uma nave espacial de formato esférico estaria sobrevoando a capital paranaense. Em estado de alerta, as forças de segurança, com seus automóveis, aviões e helicópteros, já estão descrevendo trajetórias protocolares, estabelecendo um perímetro seguro pelo contorno oeste até o bairro do Boqueirão. Relatórios da aeronáutica já se encontram em produção, contendo detalhes técnicos sobre o diâmetro da tal esfera, o grau de ameaça e o tipo de ruído que suas turbinas produzem.
Os jornalistas já teriam sido brifados sobre o status da invasão: nada certo, não publicar nada comprometedor. Instruir a população sobre a importância de manter distância. Incentivar que cada um fique em sua casa, que as crianças faltem à aula. O escritório de relações exteriores já estaria mantendo um canal aberto com as principais potências do mundo. Uma espécie de “Super Aliança Terráquea” já estaria em negociação, contando com o apoio de mais de cento e quarenta países dispostos a formar times de especialistas. Medidas financeiras cautelares estão sendo emitidas para conter o baque da invasão extraterrestre na economia global, senhor presidente. Só tem um detalhe: parece que em meio a todos os países que acataram à formação da Super Aliança, a única entidade que se manifestou contra foi o Supermercado & Açougue Zarevski.
“Como assim?”
Mudando o tom para uma espécie de ganido apologético, a assessora tenta encontrar as palavras certas: É, pois é, senhor presidente. O Supermercado & Açougue Zarevski anunciou que vai ficar do lado dos extraterrestres, ajudando na invasão. A espaçonave já iniciou a instalação de um tubo de transporte conectado às docas de carga e descarga e o supermercado já está transferindo recursos… de que tamanho é o estabelecimento? Bem, é um supermercado de bairro, desses que tem um pouco de tudo a preços ligeiramente mais caros, com a vantagem de ser perto de casa e com açougue e estacionamento, o que também é um diferencial.
A partir daí, a história prossegue para algumas tentativas de negociar com os donos do supermercado, que interpretaram a invasão extraterrestre como uma oportunidade para expandir os negócios. A vantagem, segundo eles, é que a moeda usada pelos visitantes do cosmos parece que vai valorizar em breve. Há também que considerar que, já que a espaçonave flutua acima do prédio, também não ocupa vaga no estacionamento. A expectativa da aliança é que a invasão se estenda para outros bairros: a cidade inteira estará tomada por alienígenas e por pelo menos mais quatro lojas do Supermercado Zarevski. Os extraterrestres aceitariam levar a marca em seus uniformes como patrocínio oficial do processo de invasão planetária, gerando awareness para atingir um público muito maior de consumidores. Um awareness é um lifehack no qual uma coisa é feita ao mesmo tempo em que se remete a outra coisa simbolicamente.
Tensão. O presidente sugere: podemos comprar o supermercado? Estatizá-lo? Uma reunião de contenção de danos é convocada com ministros, representantes dos grandes grupos econômicos, uma equipe jurídica que não fala muito e membros de alguma organização independente representando a oleosidade do fluxo de capital internacional. Um pequeno relatório circula entre os cavalheiros: ele traz o balanço anual do Supermercado Zarevski; uma estimativa do inventário; a árvore genealógica dos seus proprietários e uma foto na qual eles aparecem dando um panetone de presente para as criaturas do espaço sideral. Entra na sala Flávia Zarevski, filha do dono do supermercado, acompanhada de seu advogado e cunhado, Mariano.
As negociações vão muito mal. O governo não consegue desestabilizar o acordo bilateral mercadinho-invasores. A comunidade internacional se divide: os países da América Latina são os primeiros a manifestar interesse em ter a marca Zarevski presente nas suas cidades, começando pelas capitais. Walmart e Amazon tentam contato com os alienígenas, oferecendo parcerias para a próxima Black Friday. Irredutíveis, entretanto, os visitantes do espaço indicam que o contrato de exclusividade com o Supermercado & Açougue Zarevski vai até 2030, com possibilidade de renovação.
Investigadores e podcasters true crime começam a levantar as incosistências da história. Quais são os custos de uma viagem intergaláctica para conquistar um planeta como o nosso? Uma parceria com um supermercado de bairro é suficiente para garantir a eficácia do empreendimento? A conquista interplanetária pode ser considerada uma política pública? Vários esforços surgem para tornar o estranho menos estranho. Os alienígenas, convidados a se manifestar, declaram: “não somos alienígenas, somos Craudemianos. Nascemos em Craudêmia, um país do planeta Xiste-14, no terceiro braço da Via-Láctea (que VOCÊS chamam de Via-Láctea, a gente chama de Peneirinha, que é o nome certo). Aqui do lado, vira à direita em Prócion e segue toda vida”.
Tá bom mais e aí, vocês vão continuar invadindo mesmo? pergunta o apresentador do talk show. A platéia fica em silêncio, temendo pela resposta. “É muito chato ficar chamando de invasão, ninguém está invadindo nada”, declara o Craudemiano. “Vocês chamam de ‘invasão’ porque invadir algo significa ocupar dois lugares ao mesmo tempo. É estar lá e estar aqui também. É ser de lá, e agora ser daqui, mas junto. E a gente não consegue, fazemos uma coisa de cada vez. Não estamos invadindo esse planeta porque já temos um”. O apresentador reclina-se, encostando as costas na cadeira, contorce os lábios e arregala os olhos em admiração. Mas é que ficou parecendo… o lance do supermercado. É interrompido: “Desde o início nossa intenção era fazer as compras e seguir viagem, vocês que vieram com essa história de parceria comercial, empréstimo consignado. Aí fica complicado dizer não, quem não quer ganhar coisa de graça? Nosso jurídico eu confesso que não estava muito bem equipado, vocês tem essa mania de emendar uma coisa na outra e ir fazendo tudo ao mesmo tempo. Isso vai dar problema um dia, escreve o que eu to dizendo”.
O Monodimensionalismo Ocupacional, isto é, a crença que surgiu em torno dos admiradores dos Craudemianos, caracterizava-se sobretudo pela estrita proibição das tarefas simultâneas. Proclamada a partir de um manifesto anônimo que circulou pela internet nos anos 2020, a seita cresceu vertiginosamente e, em pouquíssimo tempo, já era a religião oficial de mais de dezenove países.
A prática, entretanto, não era tão intuitiva, já que demandava uma reinterpretação do funcionamento não só da sociedade, mas da fisiologia humana. Fazer uma coisa de cada vez, de acordo com os participantes, eliminava a maioria dos estímulos sensoriais. Abrem-se exceções à maioria dos sistemas fisiológicos, mas é vetada a atividade física durante a digestão, ou as conversas e flertes enquanto sob efeito de substâncias neurodepressoras. É permitido, porém, respirar ou suar enquanto se dedica a outras coisas. O efeito colateral mais notável é a também proibição do Nulismo Ocupacional: se não é permitido fazer coisas ao mesmo tempo, então também é proibido não fazer nada, ou seja, estar num estado de zero coisas sendo realizadas. Eles explicam: não fazer nada é problemático, pois é possível estar fazendo vários nada ao mesmo tempo sem ninguém perceber.
Já a facção dos Quantificadores Absolutistas resolveu se posicionar contra o Monodimensionalismo a partir de uma subversão do ateísmo terráqueo: eles pediram “truco” para essa história dos Craudemianos só fazerem uma coisa de cada vez. Qualquer cérebro de criatura suficientemente desenvolvida vai ser naturalmente adaptado para ser multitarefa, alegaram. Dispondo de instrumentos técnicos e métodos científicos, os Quantificadores tentaram listar exatamente quantas coisas cada pessoa está fazendo. Descobriram que, colocando na ponta do lápis, todo mundo está fazendo entre 26 e 248 coisas simultâneas, a depender da hora do dia. Entre batimentos cardíacos, movimentos peristálticos, secreções glandulares, piscadelas, pensamentos intrusivos e demais atividades, é impossível reduzir todos os movimentos corporais a uma única dimensão.
Não tardou para que os Craudemianos passassem a ser vistos como uma pegadinha, alguma campanha de marketing viral elaborada para tentar frear o ritmo frenético e autodestrutivo da civilização ocidental. Já os visitantes, por sua vez, não pareciam estar preocupados com as acusações. Usando bonés brancos com marca e slogan “Supermercado & Açougue Zarevski: O preferido das famílias num raio de pelo menos 50 parsecs”, eles apenas respondiam: vamos terminar as compras e depois a gente vê isso aí. Uma coisa de cada vez.
A cultura de lifehacks para o banho é impressionante. Tem gambiarras para poder assistir séries e filmes no tablet, que fica impermeabilizado com sacos plásticos. Tem pessoas que transformam o box em banheira usando piscinas infláveis ou materiais vedadores. Tem chuveiros que armazenam e reaproveitam a água. O banho é um território fértil para o empreendedorismo. Acho que as pessoas ficam pensando em muitas coisas enquanto tomam banho, inclusive no próprio ato de tomar banho.
A diferença entre encontrar a estranheza em, por exemplo, um filme do Cronenberg ou, também por exemplo, nos reflexos que se projetam sobre a superfície vítrea de um espelho, é que, no primeiro caso, o espaço ocupado não oferece riscos. No segundo, um encontro com o estranho é inesperado, atordoante, cansativo. Outros lugares onde a presença da estranheza causa mágoas: quando ela se transforma em números em meio às páginas de um exame de sangue. Quando ela se enfia no meio das palavras inesperadamente. Quando olhamos para alguma coisa agradável com mais atenção.
Acredito que uma forma segura e rápida de transfigurar a estranheza é por meio das palavras. Enfia-se a estranheza na brasa e, como um metal liquefeito, a esparramamos novamente sobre uma forma familiar, tornando-a risível, ou uma estranheza menos preocupante, dependendo do formato do molde. É pelas palavras que a estranheza vira o Unheimlich de Freud — literalmente aquilo que, por não estar próximo, não ser esperado, provoca inquietação, angústia, sofrimento; mas é também pelas palavras que o estranho se transforma no engano, no mal-entendido, no jeito de caminhar esquisito do Monty Python. Nessas coisas que não eram “daqui”, mas agora cá estão. Usando as palavras certas, e em uma quantidade considerável, o estranho nem mais estranho é. Se torna banal, corriqueiro. Transfere-se do seu espaço de estranheza para o espaço do debatível, projeta o estranhamento aos olhos de quem o estranhava.
Me senti lendo um newsletter do Douglas Adams. Simplesmente incrível, Bolívar! Parabéns pelo texto!