O filme O Mundo Depois De Nós (2023, dirigido pelo chatão do Sam Esmail) nos lembra dessa mistura de temor fundamental e desejo latente das civilizações ocidentais: e se, de repente, nossas tecnologias de telecomunicação parassem de funcionar? Apesar do alívio de nunca mais precisar entrar no Instagram, sem internet, televisão ou telefone, estamos no escuro. Não há mais como saber as notícias ou como acompanhar o que está acontecendo no mundo. Nos tornamos “ilhas”: isolados, sem capacidade de estabelecer contato com pessoas próximas que estão geograficamente distantes.
No filme, grupos extremistas conseguem explorar brechas de segurança nesse intricado sistema de informações moderno. Eles desviam satélites, disparam pulsos eletromagnéticos para desligar sistemas de navegação de aviões e navios, e voam por aí espalhando panfletos em outras línguas para promover o pânico moral da população norte-americana. O resultado é uma guerra civil da qual, ao longo do filme, pouco se sabe: ela vira o plano de fundo contra o qual o núcleo de protagonistas, composto por duas famílias obrigadas a sobreviver no mesmo espaço, precisa redescobrir laços fundamentais de comunhão resistentes à carência tecnológica estabelecida.
Dos vários desdobramentos possíveis, Esmail prefere apelar ao discurso sobrevivencialista1 norte-americano que não vê hipótese melhor do que confiar nos bunkers construídos pelos multimilionários. Se o fim do mundo é uma possibilidade tão próxima, então deveríamos estar prestando atenção nessa tendência mercadológica do bunker acessível: não mais apenas ao alcance dos ricaços do vale do silício, agora qualquer trabalhador pode financiar seu abrigo subterrâneo graças às várias start-ups e iniciativas focadas em oferecer esse serviço de sobrevivência.
Entretanto, vamos seguir confabulando na hipótese do apocalipse tecnológico. O fim das telecomunicações não é o único problema ao qual o cinema gosta de lançar sua visão. Em Mad Max: Estrada da Fúria (lançado em 2015 por George Miller, que não é tão chato), somos transportados para uma terra arrasada, desertificada e habitada por pessoas que se reorganizaram nas ruínas da sociedade. Governos não existem mais, aparentemente as cidades foram reduzidas a abrigos dispersos e as relações de comércio retornaram ao escambo primitivo. Bandos de ladrões e mercenários percorrem as areias capturando escravos, ouvindo rock e assaltando outros bandos. Tudo foi pro brejo. A única coisa que restou foram os carros.
Mad Max brinca com a possibilidade de que um homem e sua máquina motorizada são capazes de sobrevier ao pior dos cenários pisando fundo no acelerador e aprendendo a cantar pneu na areia. O que esse divertido setting provoca, no entanto, é definido por Andrew Feenberg como o paradoxo das partes e do todo: a existência dos artefatos do nosso dia a dia depende de uma rede sociotécnica de manutenção que nem sempre é evidente.
Para que os motoristas de Mad Max continuem dirigindo, seus carros precisam de uma intricada operação de background: combustíveis, refinarias, mecânicos, fabricantes de peças e lá vai pedrada. Mesmo na precariedade proposta pelo universo de Mad Max, esse sistema encontra forças para continuar minimamente robusto. Não precisa fazer parte da premissa do filme, necessariamente, investigar a fundo a forma pela qual ele se sustenta. Entretanto, uma reflexão decorrente nos faz questionar qual é o background em atuação no nosso mundo real que viabiliza os automóveis. Não há como existir o carro sem que existam também postos de gasolina, estradas, estacionamentos, borracharias, leis de trânsito, Impostos Sobre Veículos Automotivos, placas de “Pare” e todos os demais elementos que formam essa rede.
Marshall McLuhan diria que há uma tendência em enxergar apenas a figura, e não o fundo. Por trás do carro, há um histórico de batalhas e disputas políticas contra o estabelecimento de outros meios de transporte, outras formas de locomoção. A história da técnica e da tecnologia precisa, portanto, expandir a visão para além do artefato e incluir, nas suas investigações, como essa rede super complexa se tornou possível e quais são as forças que a mantém em operação. Em outras palavras, o quão apocalíptico precisa ser um apocalipse para conseguir estremecer essa estrutura. Podemos concluir que, surpreendentemente, o mundo de Mad Max não é tão diferente do nosso. Em ambos, a estrutura social privilegia uma iteração da indústria automotiva e seus sustentáculos. Tanto por lá quanto por aqui, os carros parecem estar sobrevivendo melhor que os seres humanos.
Vamos inverter o cenário d’O Mundo Depois de Nós e imaginar como seria a vida em um mundo no qual tudo foi destruído, menos as telecomunicações. Nessa distopia fantasmagórica, as ruas e centros urbanos encontram-se desertos, desprovidos da agitação do horário comercial, dos pedestres apressados e do barulho das buzinas. Enclausurados em casas e apartamentos, às pessoas resta apenas a tela conectada 24 horas por dia ao cyberespaço. Num cenário extremo, a referência principal seria a trilogia Matrix (1999, irmãs Wachowski. Mais ou menos chatas). Nesse filme, descobrimos que o corpo humano encontra-se reduzido ao status de bateria biológica, alimentando as máquinas enquanto é mantido em um estado de coma induzido. As pessoas vivem em uma simulação, num universo virtual cujo propósito é manter a atividade cerebral minimamente estimulada.
Mas não precisarmos ir tão longe. Durante a pandemia da COVID-19, a tecnologia da Internet se mostrou confiável o suficiente para depositarmos nela a continuidade das nossas tarefas diárias. Muitos trabalhadores simplesmente adaptaram-se para a modalidade remota. Alunos de escolas e universidades puderam continuar seus estudos com vídeo-aulas e ambientes de comunicação assíncrona — foi o triunfo do EAD perante o espaço físico das salas de aula. As festas entre amigos mudaram-se dos bares para o Zoom. Profissionais da saúde, para continuar seus serviços médicos e atendimentos psicológicos, descobriram que a tela de um computador quebra o galho como consultório improvisado.
O mérito é, em grande parte, do sucesso da própria Internet. Mais do que a mera conexão entre computadores, Janet Abbate preferiu reforçar, em sua pesquisa histórica, que o que de fato caracteriza essa tecnologia é o conjunto de protocolos e regras de conexão que tornam computadores compatíveis uns com os outros. O método do packet switching, pelo qual computadores fragmentam, identificam, enviam e decodificam dados pela rede, se mostrou flexível e adaptativo o suficiente para ser testado por cabos, ondas de rádio e transmissões via satélite. É um princípio que torna compatível uma mensagem enviada do mais potente computador para qualquer torradeira com conexão wi-fi. O trágico seria constatar que a Internet, assim como os carros de Mad Max, seria dificilmente extinta por algum cataclismo de proporções globais. Ela resiste porque, no seu projeto, a resistência e a descentralização sempre foram requisitos fundamentais.
Refletir sobre isso me faz pensar em um aspecto dos tempos pandêmicos que não digerimos muito bem. Nos primeiros meses de 2020, quando o lockdown foi decretado em muitos países e tivemos experiências próximas aqui no Brasil, o clima era um pouco… desolador. As pessoas se dividiam entre os que acreditavam que uma pandemia se espalhava pelo globo, e entre quem estava pedindo truco e achando que a mídia alardeava demais. Naqueles três ou cinco meses entre a aceitação do que estávamos vivendo e o início das primeiras notícias sobre o desenvolvimento das vacinas, um novo tipo de percepção ia ganhando força na mente das pessoas: a ideia de que esse novo modelo de vida, pautado por aulas online e existência internética, não apenas era viável, como também poderia ser a nossa realidade social remanescente daquele momento em diante. Em uma janela muito precisa de tempo, a Internet se tornou indispensável e inevitável. E esse pensamento, de que “a partir de agora as coisas serão assim”, é o verdadeiro apocalipse.
Mas calma lá. Estamos vendo só a figura. O fundo dessa nova vida, desse “novo normal”, era o sistema de trabalhadores essenciais, entregadores do iFood e da Amazon, cozinheiros de restaurantes e profissionais da saúde que não estavam experimentando o apocalipse da mesma forma. Por trás da tecnologia da vida online está em operação uma rede sociotécnica tão complexa e engenhosa quanto qualquer outra. O efeito dessa constatação é, obviamente, perceber que não há um fim do mundo “total”. A percepção do fenômeno varia muito de acordo com classe, gênero, raça. A pandemia, para uns, é hora extra para outros.
Um evento apocalíptico, na ficção, não é uma tentativa de prever o futuro. É um exercício de crítica ao momento presente, uma tentativa de levantar uma visão compreensiva sobre o nosso mundo a partir daquilo que se mostra em evidência. Ao propor uma falta, uma lacuna, a distopia tecnológica revela o que se normaliza enquanto excesso.
Justamente por isso, é interessante pensar no apocalipse enquanto política tecnológica. Uma proposta de deliberada omissão de um elemento da vida humana em prol de outro. O deslocamento do apocalipse de evento global para fenômeno localizado nos permite perguntar: a quem interessa que o mundo acabe?
O exemplo recente mais divertido não saiu de nenhum filme, mas do carnaval desse ano. Durante um trio elétrico na segunda-feira, dia 12, Baby do Brasil interrompeu o show que fazia em conjunto com Ivete Sangalo para dar uma má notícia aos foliões: já entramos no apocalipse. Segundo a cantora gospel, o arrebatamento “tem tudo para acontecer entre 5 e 10 anos”. Esse prognóstico fatalista é rebatido por Ivete com uma piada: a solução é macetar o apocalipse.
É importante lembrar que o elemento central de qualquer religião é uma premissa muito simples: a existência de um mundo além desse em que estamos vivendo. Na verdade, essa premissa é tão fundamental e antiga que ela persiste mesmo nos projetos mais declaradamente seculares. É a ideia da negação da nossa realidade a favor de outros mundos inatingíveis ou incompreensíveis. O método começa ao colocarmos a realidade sensível sob suspeita para defender uma metafísica de ordem superior, mais importante. Esse mesmo padrão se desenvolve em religiões e crenças dos mais distantes pontos do planeta, mas é também o que está por trás das investigações filosóficas de Platão ou Kant.
Contudo, a realidade, em sua imposição tautológica, elimina o que está fora da existência. Nesse sentido, professar o apocalipse, assim como em um filme de ficção, não precisa ser interpretado como uma tentativa de prever o futuro, ou como uma alegoria para esse suposto mundo que está além. Como parte do imaginário, a ideia apocalíptica pode ser entendida como “engenharia de relevância” para o outro mundo. Afinal, quando o aqui e o agora acabarem, é a realidade oculta, reservada aos fiéis, que tomará seu lugar. Até que, quem sabe, um novo apocalipse, atualizado e muito mais potente, se imponha. É aí que está o maior efeito das ficções apocalípticas: apagar os fins dos mundos reais, que estão em curso. O apocalipse começou em outubro de 2023 para os habitantes da faixa de Gaza. Ele aconteceu ao longo do século XVI no México. Se materializa enquanto política para uns enquanto, para a diversão de outros, se disfarça de profecia.
Referências
ABBATE, Janet. Inventing the internet. MIT press, 2000.
DE ALMEIDA, Rogério. O pensamento trágico de Clément Rosset. TRÁGICA: Estudos de Filosofia da Imanência, v. 12, n. 1, 2019.
FEENBERG, Andrew. Ten Paradoxes of Technology. Techne: Research in Philosophy & Technology, v. 14, n. 1, 2010.
MARCHAND, Philip. Marshall McLuhan: the medium and the messenger: a biography. MIT Press, 1998.
Eu não creio que “survivalist” tenha alguma tradução concordada para o português — essa não é uma moda que pegou ainda por aqui. Na dúvida, vamos com “sobrevivencialista” por enquanto.
a humanidade tem sempre que pensar na sua destruição total para vir com uma ideia salvadora.