Proposta tecno-científica para otimizar a eficácia astrológica do horóscopo
Não chega a ser recebida com espanto a notícia de que, hoje, em 2023, a astrologia vem perdendo o glamour e o charme de outrora. Vítima, como todos nós, da implacável sede de conteúdo, horas de tela e dados de reconhecimento facial das redes sociais, o horóscopo cambaleia em um enclave de interesses que descreve a situação ontológica do jovem contemporâneo: desprovido de lastro para a própria realidade, sem perspectivas de futuro e cheio de microplásticos nas veias, está servida uma situação calamitosa que transforma qualquer forma de conforto esotérico em uma necessidade diária.
Justamente por isso, a leitura crítica dos astros e constelações se vê ameaçada pela concorrência espiritual. Com respostas mais eficazes a curto prazo e melhor design gráfico de um modo geral, o Tarot desponta entre instagramers e tiktokers como uma ferramenta confiável de divinação. Além do apelo lúdico do baralho, o Tarot conta com um tropel de personagens antropomórficos que geram empatia em níveis muito mais pessoais do que as formas esféricas dos planetas distantes. Outra estratégia divinatória de crescente predileção pelas moiras da internet é a numerologia. Nem tanto por mérito próprio, mas porque cada vez mais os números nos cercam tal e qual as moscas desesperadas em torno das nepenthes. Nossa vida quantificada em likes, amontoados de seguidores, número de passos, calorias e pontuação no Serasa criam um cenário rico para os intérpretes dessa herança arábica.
Passando pelos cristais, quiromancia e outros reflexos misteriosos de nós mesmos, também é implacável o impacto que os famosos testes de personalidade como o MTBI e o Eneagrama geram em nossas vidas. Não tão voltados à providência de imagens fiéis dos futuros possíveis, tais métodos analíticos se prestam mais a mapear comportamentos e a explicar com palavras dóceis as piores características que uma pessoa é capaz de desenvolver como resultado da péssima influência familiar. Os testes de personalidade suplantam quase que completamente a função da astrologia, puxando da literatura humana da Psicologia e não das, por muitas vezes duvidosas, configurações estelares o embasamento de sua normatividade vocacional.
Apresentado o catastrófico cenário, é imperativo que o horóscopo arrume artifícios para passar a se valer das mesmas artimanhas numérico-gráficas dos seus concorrentes. Pessoas que tendem a adotar um método esotérico como baliza para a própria vida geralmente não se incomodam em jogar mais possibilidades de orientação na roda. Ou seja, quem tira o Tarot no sábado provavelmente estará dando uma olhada no folhetim astrológico na segunda também. Logicamente, não é esse o público atrás do qual a presente proposta se dedica a ir. De fato, a abordagem tecno-científica que trago ao horóscopo visa aproximá-lo das modernas fontes de dados divinatórios, tal e qual os mecanismos de machine-learning e os cursos de investimento na Bolsa de Valores. Como consequência, o público a ser atraído é justamente aquele composto por indivíduos que escolhem não acreditar nas mensagens dos corpos celestes, preferindo talvez a própria sorte, a crença no não-determinismo cósmico ou ainda a diversão proporcionada pela ignorância.
Vamos tentar pontuar alguns problemas históricos da astrologia. A começar pela grande dificuldade em acertar os signos e influências espaciais de pessoas que não são do nosso círculo social mais próximo. Podemos até arriscar palpites de comportamento baseado na tríade de informações sagradas: data de nascimento, horário e local. Traçado o mapa astral, é possível caracterizar o indivíduo em seus mais íntimos nuances, graças ao posicionamento das doze constelações do zodíaco em relação aos planetas do Sistema Solar. Entretanto, o enjambre se mostra frágil a partir do momento em que pessoas com mapas astrais parecidos demonstram escolhas de vida completamente diferentes. Cientificamente falando, diríamos que estamos isolando a variável errada.
Outro caso emblemático pode ser observado em personalidades como o nosso digníssimo presidente Luiz Inácio. Após uma confusão no cartório, o filho de Eurídice Ferreira de Melo foi registrado como tendo nascido no dia 6 de outubro de 1945, enquanto historiadores, biógrafos e familiares defendem que a data correta seria no dia 27 do mesmo mês. Vinte e um dias de diferença com implicações drásticas para a astrologia, visto que nosso tri-presidente teria que passar de libriano (diplomático, equilibrado, regido pela beleza de Vênus) a escorpiano (sensual, calculista, regido pelos mistérios de Plutão). A coisa complica quando uma pessoa, cujas características já foram tão esmiuçadas pela sua vida pública e pelos repórteres da Veja, passa a ser analisada astrologicamente. Outro problema científico, o “enviesamento”, dá as caras, fazendo parecer que a astrologia é muito menos sobre os astros e muito mais sobre só enxergar aquilo que queremos ver.
Qual é, pois, o grande ponto fraco da astrologia, que a faz ser alvo de tanto descrédito por parte da massa supostamente esclarecida de enjalecados do laboratório? Por que os grandes jornais dedicam apenas uma porção de página ao horóscopo, e não um caderno inteiro para tratar das influências fatais do cosmos em nossas insignificantes vidas? Eis aqui o ponto central do meu argumento (e que, portanto, demanda uma certa autocrítica dos meus queridos apolíneos): a astrologia não pode mais permanecer inteiramente baseada nos métodos astronômicos pré-renascentistas.
Consultar um astrólogo hoje é o equivalente a ir em um consultório médico para tratar um torcicolo e receber em troca um unguento de manjericão e uma receita de sangria. Astrólogos valem-se dos manuais utilizados pelos antigos egípcios e gregos para seus diagnósticos, como se a informação contida ali fosse o próprio lapis philosophorum dos alquimistas. Tais manuais, entretanto, eram as bases para as quais os próprios astrônomos do renascimento começavam a olhar torto.
Inspirado pelos tímidos tratados de Nicolau Copérnico, Galileu olhava para o céu com suas lentes artesanais e anotava alguns comportamentos estranhos. Tenhamos em mente que a astronomia, da forma como a conhecemos hoje, é extremamente antiga, uma arte observacional empregada pelos primeiros agricultores para calcular as melhores datas para o plantio e para as orgias com seus colegas. Por mais de um milênio, a obra de Ptolomeu de Alexandria era a referência número 1 de astrônomos e outros curiosos das estrelas para prever ciclos, eclipses, chuvas de asteroides e outros fenômenos. A astronomia, em síntese, era uma ciência preditiva: com base em cálculos, o posicionamento dos corpos celestes era descrito e suas órbitas se tornavam legíveis. Ptolomeu descrevia tais movimentos circulares excêntricos por epiciclos, que não eram exatamente precisos mas conseguiam explicar a dinâmica estelar aos observadores terráqueos conquanto que um pressuposto fosse aceito: o da centralidade do nosso pequeno planeta no panorama geral do universo.
O Almagesto, de Ptolomeu, teve uma notável circulação entre os cabeções do renascimento graças à prensa tipográfica, uma novidade tecnológica que permitia reproduzir livros mais rapidamente (e, muitas vezes, longe dos olhos dos padres e bispos). A obra acabou caindo nas mãos de pessoas que tinham contatos com os vidraceiros holandeses e outros inventores espirituosos, que trataram logo de empilhar lentes em tubos e apontá-los para o céu. A emblemática página do diário de Galileu de 19 de janeiro de 1610 mostra o seu preciso desenho da lua, com o relevo de suas crateras iluminadas realisticamente e todas as imperfeições do solo. Logo abaixo do desenho aparece um pequeno mapa astral, em cujas linhas geométricas se descrevia um horóscopo endereçado ao mecenas Cosimo II de Medici. Nesse pequeno artefato temos uma descrição poética das tensões da época, onde dois céus se sobrepunham: as observações e teorias que não se encaixavam mais com os modelos ptolomaicos também sugeriam uma necessidade de readaptação cosmogônica.
A inimizade cultivada pela ciência contra a astrologia (e vice-versa, que fique claro!) se deve a uma necessidade de negação do hermetismo neoplatônico cujas raízes deram lugar ao método científico moderno. O ser humano imaginava seu local como um intermediário entre o céu e a terra e buscava, por meio da matemática, unir macrocosmo e microcosmo. Entretanto, do ferramental da lógica numérica vem também o outro gume da faca: a evidência da contradição contida naquilo que não se demonstra empiricamente com a ajuda dos artefatos tecnológicos. É uma necessidade, para a ciência, que ela não inclua a astrologia, mas a astrologia não precisa negar o positivismo científico para se fortalecer.
Enquanto escrevo essas palavras, já faz mais de um ano que o telescópio James Webb foi disparado em direção ao espaço sideral para produzir as mais desgraçadas imagens da imensidão cósmica. Juntamente ao resto da parafernalha astronômica em atividade hoje, temos à disposição infindáveis imagens dos pontos mais distantes do universo e de todas as bizarrices que ele até então estava tentando esconder de nós. Particularmente, acho um absurdo que a astrologia não se movimente para aproveitar esses recursos.
Não estou sugerindo medidas paliativas como ampliar o portfolio de signos do zodíaco ou qualquer coisa do gênero. Sem mais delongas, apresento minha proposta: vamos trocar a habitual abordagem indutiva do horóscopo, da qual parte-se dos signos para compreender o indivíduo, e fazer o caminho inverso: por uma abordagem dedutiva, investigar as pré-disposições individuais e só então inferir quais astros podem estar afetando os miolos da pessoa.
Essa abordagem dedutiva não é tão desafiadora. Temos, pelos menos, três fontes de dados confiáveis para traçar um perfil astrológico preliminar: a vida exposta na cyberesfera, que se mescla entre a diversão do Instagram e o autoflagelo do LinkedIn; notícias em jornais e revistas, caso o objeto tenha se exposto de alguma maneira notável; e, por fim, relatos de colegas de trabalho, amigos e familiares: documentos facilmente obtidos mediante pagamento ou promessa de uma boa fofoca em troca. Tudo isso ignora ainda o potencial informativo dos milhares de vazamentos de dados em curso ao longo dos últimos anos: informações sobre cartão de crédito, contas bancárias, movimentações e deslocamentos físicos são acessíveis até mesmo contra nossa vontade, visto que pacotes com nossas informações são negociados entre empresas quase que como upselling para qualquer outro serviço. De fato, nosso paradigma atual é o do excesso de informação não-solicitada sobre as pessoas. É até incrível que alguém, com tantos detalhes perfilados sobre a própria vida de modo voluntário, ainda acredite que os astros tenham qualquer informação adicional ainda não descoberta. Mas enfim.
Chamemos essa primeira etapa de Fichamento Pessoal Inconclusivo. O FPI não revela necessariamente o signo do indivíduo, apenas aponta as bases iniciais para uma triangulação cósmica. Não podemos ignorar todo o gigantesco trabalho da astrologia ancestral feito até agora, então tomemos como base uma primeira análise que joga o FPI contra o horóscopo convencional. A sacada está justamente em ignorar a tríade sagrada (data de nascimento, hora e local) e preferir uma sistematização por meio dos dados de vida. Essa análise preliminar sugerirá um signo, mas ele serve apenas como elemento de controle. O método dedutivo entra em cena: criamos uma imagem remanescente do indivíduo composta pelas características que escapam às previsões do signo original e apontam para novas formas de enquadramento. Não estamos mais falando dos lugares comuns como “é uma pessoa calma” ou “é alguém que busca vingança não importa o quanto isso custe para sua saúde mental”. Aqui, se apresentam os detalhes mais incomuns trazidos pelo FPI: ter agonia de unhas compridas. Gostar de misturar doce com salgado. Nunca ter tido vontade de ir no Beto Carrero World. Chorar ouvindo Roupa Nova. Ter medo de dentista. Fazer cocô gritando. Gostar de Fórmula Truck. Só comer arroz e ovo. A experiência humana é grandiosa em escopo, e justamente por isso o FPI precisa fazer questão de caçar os detalhes mais esdrúxulos, tratados pelo horóscopo original como pouco dignos de atenção.
Esse conjunto de detalhes do FPI é usado para orientar uma nova cartografia astrológica que se vale de todos os corpos celestes descobertos pela tecnologia contemporânea. Já não somos mais atribuídos a signos identificados pelos antigos gregos. Agora, uma pessoa que reúne características aleatórias à primeira vista (e.g. paladar infantil + vício em séries true crime + dificuldade para interpretar placas de trânsito + preferência por energéticos sabor manga) pode descobrir que isso não se deve a ser do signo de Sagitário, mas sim por estar sendo regida pelas ondas eletromagnético-espirituais emitidas pela estrela Deneb Algedi (código IAU HR 8322), localizada a 39 anos-luz da Terra e responsável principalmente pelo gosto por bebidas sabor manga e pelo interesse em serial-killers.
Graças ao método dedutivo, é possível compilar as características mais específicas de cada uma das 8 bilhões de pessoas do planeta e estabelecer nuances suficientes para designar pelo menos uma estrela e um exoplaneta para cada uma. A maioria desses corpos celestes encontra-se vazia, isto é, ainda sem nenhuma forma de expressão humana assinalada como sendo sua culpa. Se quisermos, podemos alçar um aspecto fenomenológico ao método e também ponderar sobre os efeitos das relações entre esses corpos, transcendendo as linhas de translação do sistema solar. Isso nos daria infinitas formas de atribuir signos, demandando até mesmo um apelo aos objetos do dia a dia como recurso de nomenclatura. Seu signo poderia ser de Bule da Café com ascendente em Samambaia, lua em Fóssil de Trilobita e quasar de interferência principal SDSS J1004+4112 (popularmente conhecido como “Strogonoff de Nozes”).
Entendo que ainda haverá muita resistência por parte dos astrólogos em aceitar essas atualizações. Minha recomendação é procurar estudos de caso que nos forcem a reavaliar a potência da astrologia perante a inventividade humana. O ex-juiz, ex-ministro, ex-usuário de Telegram e ex-assessor de debates do Bolsonaro, o agora senador Sérgio Moro é um caleidoscópio humano, com uma vida tão intrigante e movimentada que fica difícil acompanhar tanta fluidez apenas dispondo de um signo solar, um ascendente e uma lua. Definitivamente, casos assim deixam a astrologia em maus lençóis, visto que uma outra pessoa com características astronômicas próximas possa se sentir ofendida pelas análises.
Reconheço, em tempo, que minha proposta tem muitos pontos fracos que carecem de maior atenção. Leitores mais sagazes devem ter compreendido que a faixa etária acaba se tornando fundamental para ter mais informações sobre os comportamentos e inclinações de uma pessoa, bem como sua localização geográfica, status social, acesso a bens de consumo e condições estruturais. Perante a isso, o horóscopo é de fato uma ferramenta imbatível, capaz de apontar os mais sinceros prognósticos mesmo no mais envolvedor breu informacional. Meu otimismo se resolve com a crescente onda de pesquisas genéticas. Mesmo antes de ter um bebê, pais com quantidades supérfluas de dinheiro em breve poderão optar por uma engenharia intrauterina que seleciona as melhores características a serem passadas à prole. Enquanto uns enxergam nessa tendência um novo modelo de eugenia, eu também acrescento que teremos ainda mais dados disponíveis sobre cada indivíduo logo no momento do nascimento, renovando a potência do nosso Horóscopo 2.0. Podemos ritualizar a descoberta do próprio signo, fazer uma festa de 15 anos na qual se descobre uma tendência interplanetária: abre-se um novo mercado para empresas de festas e fantasias. Nada nos impede também de renovar o signo a cada cinco ou sete anos. Permanecer a vida inteira sob a influência dos mesmos astros parece uma forma abusiva de controle comportamental, uma imposição tragicamente causada pelas circunstâncias do nosso nascimento, assim como o lado de preferência na luta de classes e o colonialismo. Com a renovação astrológica, cada pessoa pode consultar suas influências cósmicas e reorganizar seu mapa astral com a mesma frequência que contrata cartomantes, sem ônus à própria personalidade.
Por fim, gostaria de encerrar o ensaio reconhecendo o popularizado argumento que denomino como “proxy astrology": sempre uma carta na manga dos meus colegas arcanos, trata-se de uma alegação de que os signos estelares e planetas regentes são meras representações. Eles existem no imaginário, sem referência ao mundo real, apenas como manifestação de arquétipos e outros instrumentos metafísicos. Infelizmente, esse argumento é muito potente e eu não vejo motivo para negá-lo: ele aproxima, em vez de afastar, a astrologia de seus métodos concorrentes. Afinal, todos são “proxies” para esse mesmo reino oculto de símbolos. Se de fato for essa a questão, então peço que ignorem minha proposta e se atenham ao aspecto linguístico da discussão: talvez não seja um problema “astrológico”, mas apenas “astroilógico”.
Texto publicado originalmente na edição de março de 2023 do jornal RelevO.