Esse é um assunto recorrente sobre o qual sempre tenho vontade de opinar mas acabo nunca escrevendo nada. Infelizmente, um padrão está ficando claro nas discussões e talvez eu consiga ajudar a desembaraçar essas tramas. E, por sorte, aqui é um blog.
Há alguns tempos, One Piece entrou no radar da polêmica porque alguns leitores apontaram certas divergências entre o conteúdo original em japonês e as escolhas que tradutores vinham fazendo, alegadamente sob a justificativa de não querer dar margem para “interpretações políticas” da história. Algo sempre se perde e se ganha em traduções, não é uma atividade mecânica. Exige interpretação, adaptação, contextualização. O problema é pressupor que uma obra como One Piece não possa ter conteúdos políticos.
Qualquer pessoa que acompanha os mais de mil capítulos da historinha do pirata que estica sabe que o autor, Eiichiro Oda, não é nada sutil para retratar alguns temas. De certo modo, é possível detectar temáticas de gênero, legitimação de poder, cerceamento de liberdades, concepção de comunidades e vários outros aspectos que imediatamente remetem a um lado político que a obra tenta transmitir. Mesmo assim, alguns fãs insistem na ideia de que há uma possibilidade de ler One Piece de forma “não política”, isto é, focando apenas no entretenimento, nas lutinhas, nas piadocas. Seria isso, de fato, possível?
Em outro exemplo recente, o youtuber Davy Jones entregou para seus mais de 3 milhões de seguidores um vídeo no qual revelava sua visão em relação aos videogames: tratam-se, acima de tudo, de entretenimento, diversão. Não precisam ser vistos enquanto artefatos políticos. Um videogame é algo criado para divertir as pessoas, e qualquer outro aspecto além do entretenimento localiza-se no observador, e não no artefato.
Para além do problema óbvio desse tipo de colocação — a possibilidade de criar qualquer coisa do vácuo, desatrelada de contextos sociais, produtivos e econômicos — eu acredito que possamos resumir o cerne dessa problemática da seguinte maneira: há um interesse em alegar que algo não deve ser discutido politicamente. Evitando cair na conclusão generalista de que tudo é política, podemos tentar resumir o interesse que prega a despolitização em dois tópicos gerais.
Alegar que uma obra não é política serve para diminuir o valor da própria obra.
Alegar que uma obra não é política serve para restringir as possibilidades de uma discussão política.
Tentarei discutir esses dois tópicos brevemente e, no fim, tentar propor uma espécie de pontapé para discutir política na sua obra favorita sem medo. Vamos ver se rola:
Um dos canais do youtube mais assistidos no mundo chama-se Chuchu-TV. Em 2023 ele registra mais de 68 milhões de inscritos na sua conta principal, além das versões próprias de cada país (o ChuChu-TV brasileiro tem mais uns 4 milhões de assinantes). O conteúdo do canal é voltado a bebês e crianças e consiste basicamente em canções de ninar, rimas, dancinhas e musiquinhas para entreter esse demográfico ávido por estímulos visuais e auditivos. Talvez o maior sucesso do canal seja a música Johny Johny Yes Papa, uma repetitiva melodia na qual um bebê e seu pai discutem sobre quem comeu biscoitos.
Os idealizadores da ChuChu-TV são os indianos Vinoth Chandar e B. M. Krishnan, que gerenciam mais de 200 pessoas em um escritório localizado na cidade de Channai, no sul da Índia. Quando os vídeos produzidos pela dupla começaram a alcançar mais pessoas, logo eles perceberam que tinham acertado uma fórmula simples, mas eficaz: musiquinhas repetitivas e imagens coloridas conseguem entreter crianças facilmente, ultrapassando barreiras de linguagem e localização geográfica. Entretanto, há alguns detalhes que precisam de ajustes. Por exemplo, ao retratar a convivência em família, é muito normal, na Índia, que a casa tenha uma cama comunal na qual várias pessoas durmam juntas. Ao receberem alguns feedbacks da audiência ocidentalizada, os animadores da ChuChu-TV tiveram que adaptar algumas cenas, dando quartos e camas individuais para os personagens.
Vou propor um exercício agora: como você discute sobre o seu jogo de videogame favorito com seus amigos sem entrar em detalhes políticos? É possível se ater a elementos técnicos, discutir questões de gameplay, dificuldade, gráficos e outros atributos internos da obra. Evidentemente, essa discussão assume um caráter descritivo, na qual cada interlocutor cita os aspectos que mais lhe chamaram atenção e pronto. Entretanto, a partir do momento em que entram em cena as emoções evocadas, sentimentos e reflexões proporcionados por esse jogo, a discussão se abre para outras searas, pois um mesmo artefato provoca reações diferentes em cada pessoa.
Se um elemento cultural resulta em direcionamentos para tomar decisões estéticas em uma obra, então estamos falando de um problema político, visto que, como no caso da ChuChu-TV, elementos externos à vontade dos artistas e demais profissionais acabaram impactando no resultado final apresentado. Isso, na verdade, é a regra: os requisitos para compor qualquer obra surgem de várias limitações externas, seja no cronograma, nos materiais disponíveis, no público almejado, na mão-de-obra envolvida ou até mesmo na escolha das palavras permitidas em um roteiro ou em uma música. No fundo, a ideia de que um artista é um ser autônomo, capaz de fazer “arte pela arte”, é uma ideia muito contemporânea, fruto de uma mentalidade voltada a destinar menos recursos para as artes e mais para outras atividades econômicas.
O mais estranho é que questões culturais são identificáveis em obras simples, como os vídeos para crianças da ChuChu-TV. Oras, por quê elas não podem ser levantadas em mídias mais complexas como os jogos digitais ou os quadrinhos japoneses? Parece que há uma espécie de medo de deixar essas obras mais inacessíveis ou até mesmo chatas quando elas passam a serem tratadas politicamente. Na verdade, questionar elementos políticos em uma obra tende a apenas enriquecê-la, por que discussões políticas abrem mundos ficcionais para diferentes interpretações.
Podemos explorar o valor político de duas formas iniciais: existem elementos externos, discursivos, que sugerem as circunstâncias nas quais a obra pode ser desenvolvida. Discutir política, nesse sentido, é questionar como foi possível que tal coisa tenha sido feita, ou que tal coisa tenha chegado até nós. As imagens geradas por softwares de inteligência artificial como o Midjourney usam bancos de dados que treinam os algoritmos, alimentando-os com referências da internet que foram, muitas vezes, coletadas sem a permissão de artistas, fotógrafos e escritores. Tais artefatos já nascem sob circunstâncias que posicionam a tecnologia em um terreno intrinsicamente político: de fato, elas servem para nos fazerem perceber que nenhuma tecnologia existe em estado puro, desatrelado da sociedade. Novas ferramentas, equipamentos ou sistemas surgem em contextos que, de uma forma ou de outra, ajudam a definir suas características.
Lanço a seguinte proposta: para abraçar a discussão política como forma de enriquecer a obra discutida, precisamos abandonar a ideia de que um artefato ou manifestação de arte está “representando” o mundo real. A ideia da arte enquanto representação é amplamente difundida porque, supostamente, pelas mãos de artistas e demais envolvidos, elementos da realidade seriam remodelados e trabalhados para representar certas coisas. Isso acaba caindo em discussões quanto à verossimilhança, ao realismo ou ao quanto uma obra tem caráter documental por ser precisa em termos de representação sociológica.
Há dois problemas nesse tipo de posicionamento. O primeiro é acabar acreditando que, por ter caráter realista, uma obra pode ser mais política do que outra. Os exemplos que usei aqui (ChuChu-TV, Midjourney e One Piece) acabariam caindo num ranking pelo qual classificaríamos essas amostras como a que melhor representa o mundo até a que não tem nada a ver com nossas vidas. Tal ranking seria um reflexo muito maior dos vieses dos analistas do que, de fato, uma ferramenta precisa para definir critérios políticos. É necessária uma simetria: problemas políticos podem estar presentes tanto nas representações familiares da Peppa Pig quanto na agência depositada em cada personagem do universo Marvel.
Obviamente, é preciso qualificar o que vale a pena ser discutido em cada caso, mas se uma obra não pode ser tratada como representação, então o que ela é? O segundo problema que menciono advém do pressuposto que surge ao pegarmos uma obra de arte e a interpretarmos como representação da realidade: a possibilidade de acessar algum mundo real sem precisar representá-lo. Essa realidade pura, encontrável em pontos específicos do planeta Terra e, portanto, mais merecedores da nossa atenção, é uma ideia singular, fruto do pensamento positivista que pretende separar sujeito e objeto com precisão e delimitar a realidade como um objeto acessível por meio das ferramentas certas.
Esse é um debate próprio da filosofia da ciência, mas é curioso ver como a arte se comporta por essa perspectiva. Em vez de representação, ela pode ser encarada como um elemento constitutivo da realidade. Podemos pensar no Titanic enquanto fato histórico, acessá-lo por meio da sua carcaça submersa no oceano Atlântico, mas não podemos ignorar o impacto que o filme Titanic teve sobre nossa percepção do evento. Dessa forma, a arte não é tanto um espelho convexo do mundo real, que reflete suas características distorcendo algumas e ampliando outras, mas uma lente através da qual nossa percepção acessa os elementos do mundo real e os interpreta. Por essa perspectiva, filmes, músicas, livros, jogos e o que mais entrar em contato conosco acaba agindo como um dispositivo de construção do real, que por nós é incorporado e apropriado como forma de pré-dispor nossas próprias visões sobre o mundo. Mesmo um historiador formalista, que comece sua aula dizendo algo como “Esqueça tudo que você viu no filme do Titanic porque é mentirada”, está usando a obra como ponto de referência para uma construção de mundo, ainda que de forma negativa.
Encaro eu que essa seria uma forma mais valorosa de se portar diante dos artefatos artísticos do que apenas mensurar seus níveis de realismo. A análise política de uma obra assume então um caráter criativo, que nos permite investigar onde estão os pontos de construção de mundo (e o que foi deixado de fora, propositalmente ou não).
É justo, entretanto, considerar o outro aspecto dessa problemática: evitar a interpretação política de uma obra serve para restringir o que podemos entender como “discussão política”. Sendo franco, discutir política dá preguiça às vezes. O estado da arte da coisa, isto é, o que eu geralmente vejo rolando por aí, é um entendimento precário sobre o que é analisar algo criticamente. São discussões voltadas a, por exemplo, classificar os personagens de algum filme entre os quatro quadrantes do espectro político, ou tentativas de constatar objetivamente que obra é de esquerda e que obra é de direita. A única coisa que chama atenção, aqui, é o aspecto cômico desse tipo de discussão, como se fosse possível localizar precisamente cada manifestação da criatividade humana em uma vertente socioeconômica e desprezar qualquer nuance que ela possa oferecer.
A política não acontece no campo das ideias. Ela não é uma questão de preferência, onde você localiza em um espectro as coisas de acordo com o gosto. A política acontece nas ações do dia a dia. É sobre tempo, dinheiro, prioridades.
Reduzir a discussão política entre esquerda versus direita é útil geralmente para quem quer “rezar para convertidos”. A compreensão de uma obra como elemento de validação de um posicionamento político parece descaracterizar o potencial crítico da arte, pelo qual uma obra nos faz perceber o que estava, até então, imperceptível. Eu vejo esse reducionismo maniqueísta da discussão política como um claro sintoma da nossa disponibilidade em compreender obras artísticas: como uma espécie de peneira, depositamos nela os artefatos que nos interessam e chacoalhamos até restarem apenas aqueles pedregulhos grosseiros o suficiente para nos distraírem por tempo indeterminado. Eu não preciso discutir política: já sei o que eu gosto, e inclusive tenho certeza das minhas convicções a ponto de poder deixá-las ditarem o que eu não devo gostar.
É um posicionamento bizarro, mas por trás dele está tanto o nerdola que não quer aceitar a presença de temas políticos no seu quadrinho favorito, quanto o crítico que não quer reconhecer que Top Gun Maverick é um filme muito caprichado. Deixar se expor a uma obra de arte é também um ato de confronto: analisar uma mensagem e perceber tanto seus efeitos na construção da realidade como as circunstâncias pelas quais esses efeitos estão sendo possibilitados. É preciso ver a contemplação da arte como um fenômeno: consumir uma obra muda a mim mesmo, mas muda também a obra, que passa a não mais ser apenas um artefato no mundo, mas um elemento de construção do meu entendimento sobre o real. Não há como despolitizar uma obra sem despolitizar a si mesmo, e aqui é que está o pulo do gato: não há como despolitizar a si mesmo.
O que eu posso fazer, a partir daqui, é tentar ajudar quem quer discutir política em suas obras favoritas a fazê-lo sem medo de estar reduzindo tudo a um debate esquerda versus direita. Eu vou propor, correndo o risco de ser simplista, 3 perguntas como ponto de partida para a análise política de uma obra:
Como o poder é distribuído ao longo da obra? Imagine uma malha, uma espécie de teia pela qual você pode distribuir os personagens de algum filme ou de alguma história em quadrinhos. E aí você pode deixar pontos dessa teia mais pesados conforme você identifica onde a noção de “poder” está mais presente. Aqui, é preciso entender que o poder é a capacidade que um personagem tem para, por exemplo, tomar decisões por si mesmo. Uma análise política interessante é perceber onde se encontra o poder e desdobrar, a partir dessa constatação, as implicações que isso gera ao restante dos personagens. A política aparece como uma espécie de decisão executiva, na qual alguns personagens comunicam mais claramente seus posicionamentos do que outros. Se você pudesse reorganizar essa rede, como distribuiria esse poder? Quem merece mais ou menos, e qual seria o impacto disso na narrativa?
Como o controle do corpo é representado? Ficar sentado na mesma posição pela manhã inteira ouvindo alguém falar é uma forma de controlar corpos. Ter que ficar de pé pra andar de ônibus é uma forma de controlar corpos. Programar um despertador para as 6 da manhã é uma forma de controlar corpos. Sugerir padrões de vestimentas é controlar corpos. Controles corporais, tentativas de condicionar comportamentos e representações desses corpos são temas sempre muito facilmente identificáveis em obras de arte. A discussão política resultante é previsível: alguns corpos são retratados mais dignamente do que outros, mas a questão pode ir além. Corpos estão presentes em esculturas, em descrições nas letras das músicas, em ângulos de câmera nos filmes. De fato, até mesmo em uma pintura abstrata é possível ver um corpo, se pensarmos nos gestos que o pintor teve que fazer ou no ângulo ao qual sua coluna vertebral teve que se sujeitar. O corpo é um ponto de partida seguro porque é algo que nos une: todos temos um corpo para servir como comparativo.
Por quê essa obra existe? É difícil assistir às mais de 7 horas de vídeos com análises sobre o jogo Cyberpunk 2077 do Tim Rogers, não sei se eu recomendo. Mas é legal ver uma pessoa conseguindo tecer as mais diversas elucubrações a partir de um jogo que eu também joguei e, ainda por cima, preenchendo as pontas soltas deixadas por esse jogo com suas experiências pessoais. Nenhuma obra apenas “é”, ela sempre carrega um “poderia ter sido” que nos deixa encucados. Reforço: discutir uma obra politicamente é um ato criativo: analisando as condições de produção, podemos imaginar hipóteses, versões mais ou menos ideais, teorias sobre como as decisões foram tomadas. Acho que esse é o maior ponto de síntese para meus argumentos, porque o simples fato de uma coisa existir a torna vítima das circunstâncias. É uma questão que nos força a ir além do “porque o artista teve vontade” ou “porque alguém pagou por isso”: essas são respostas “matadoras” da política, por que recorrem a argumentos muito esparsos. Absolutamente, todos os dias, alguém tem vontade de fazer alguma coisa e tudo está mais ou menos implicado de forma econômica. É mesma coisa que dizer que temos problemas sociais porque vivemos em uma sociedade. Nessas horas, é legal pensar que a conclusão de uma discussão política não precisa ser uma resposta, mas talvez uma pergunta melhor elaborada. “Por quê essa obra existe” é uma pergunta ruim, por exemplo. Tente refazê-la a partir de alguma obra específica.
Não quero que isso seja entendido como uma proposta do único modelo de análise válido para obras de arte. Sugiro apenas pontos de partida para abordagens que consigam dialogar no campo político. Tudo bem querer sintetizar os elementos identificados como sendo de esquerda ou de direita, é até meio que inevitável, dado o nosso contexto. Eu odiaria passar por isentão ao sugerir que essa abordagem é errada, porque evidentemente é uma discussão assimétrica: nada resta ao tradicionalista reacionário além do argumento ontológico. Tentar desqualificar algumas coisas a favor de uma arte “pura”, de um resgate nostálgico. Esse argumento também mata a política porque é muito mais fácil projetar um ideal artístico em algo que carrega contextos circunstanciais de outras épocas, aos quais temos pouco ou nenhum acesso. Negar o contemporâneo enquanto expressão legítima é admitir o fracasso interpretativo.
E, por fim, eu também não quero pressupor que uma obra é interessante só porque ela facilita discussões políticas. One Piece não é relevante porque retrata o pensamento anarquista ou whatever. One Piece é relevante porque é legal pra caralho, acima de tudo. E eu não admito que falem mal.
Sou historiadora e trabalho com literatura e essa é uma discussão que aparece bastante. Às vezes colegas de outras correntes historiográficas tendem a enxergar o que eu e outros fazemos sob esse viés da "representação" que você falou.
Ai vale lembrar que o Stendhal já disse que se a literatura é um espelho, é um espelho que se move em uma estrada. E Peter Gay acrescentou que além de se mover, é um espelho que distorce.
Achei legal seu texto e os exemplos que você trouxe, embora nunca tenha tido coragem de encarar o imenso One Piece haha
Abraço