Entre os pixels de livros antigos
O primeiro livro impresso em português na região das américas, do qual se tem registro, tem um título longo (como era o costume em livros produzidos na era pré-moderna). Chama-se D.O.M. Luzeiro Evangelico Que mostra à todos os Christaõs das Indias orientais o caminho vnico, seguro, & certo da recta Fè, para chegarem ao porto da salvaçaõ eterna, ou INSTRVCÇAÕ dos principais Artigos da Religiaõ christaõ controvertidos, os quais se explicaõ com claridade, & se provaõ com evidencia pela Escritura sagrada, pelos sacros Concilios, & santos Padres dos primeiros seculos. O tomo de mais 500 páginas foi escrito pelo missionário Juan Baptista Morelli, em 1708, e copiado por uma prensa tipográfica mexicana dois anos depois, em 1710. Estacionado nas Filipinas, que eram então colônia dos espanhóis, o jesuíta tinha como principal objetivo combater a proliferação da religião Protestante nas Índias Orientais.
A difusão de livros impressos nas América Latina e do Norte já era prática comum desde o século XVI. A tecnologia renascentista se popularizou no ocidente graças aos empreendimentos de Gutenberg, mas já era bastante conhecida na China pelo menos desde o século XII. A primeira prensa tipográfica do México (e das américas) foi estabelecida em 1539, apenas 20 anos após o início da invasão dos exploradores espanhóis liderados por Cortés. Um pouco depois, os estabelecimentos no entorno de Teotihuacán, que foi tomada e ocupada pelos invasores, já contavam com a primeira universidade em território americano: a Real y Pontificia Universidad de México, em 1551. A instituição era a responsável pelo grande volume de obras impressas localmente. De tom litúrgico e voltadas para a difusão da religião católica entre colonizadores e povos indígenas, tais livros circulavam principalmente entre os oficiais das ordens catequistas (jesuítas e franciscanos) e entre as poucas famílias de colonizadores letrados.
É complicado saber qual foi o primeiro livro impresso no México. Dificilmente as cópias da época colonial sobrevivem, e portanto alguns títulos disputam esse pioneirismo. A seguir temos uma das poucas páginas que restaram de um livro chamado El manual de adultos, uma espécie de guia para o ritual de batizado usado pelos padres. O livreto foi impresso por Juan Cromberger na Cidade do México em 1540. As belas letras góticas vinham de tipos trazidos do continente europeu, assim como o papel e os demais insumos da tarefa extremamente difícil e controlada da tipografia.
A conquista espanhola continuou no século XVI pela América Central em direção ao sul e em 1535, Francisco Pizarro tomou a cidade de Cuzco após raptar o líder Atahualpa. A colonização espanhola seguiu uma lógica de aproveitamento das estruturas existentes, e por isso tanto a Cidade do México quanto Lima, no Peru, foram assentamentos próximos às cidades astecas e incas já bastante populosas na ocasião da chegada dos europeus. Acredita-se que a primeira oficina tipográfica no Peru tenha sido estabelecida em 1584. Do mesmo ano temos o registro da publicação de Doctrina Christiana, y Catecismo para Instrvcion de los Indios, y de las de mas personas, que han de ser enseñadas en suestra sancta Fé. Con vn Confessionario, Y Otras Cosas necessarias para los que doctrinan, que se con tienen en la pagina siguiente. Assim como grande parte dos livros impressos na época, o objetivo deste era a catequização dos povos originários: para aumentar o alcance da leitura em voz alta dos seus conteúdos, a edição em questão trazia os textos não apenas em espanhol, mas nos idiomas locais quechua e aymara.
Nas colônias britânicas da América do Norte, as primeiras prensas tipográficas já funcionavam no século XVII. Em 1640, a cidade de Cambridge, na colônia de Massachussets, inaugura o seu parque gráfico produzindo mais de mil cópias do The Whole Booke of Psalmes, Faithfully translated into English Metre (das quais estima-se que sobraram apenas 11 hoje).
Há um longo registro da participação de mulheres na história da tipografia norte-americana. Por terem sido donas de grandes acervos que se mantiveram preservados, ou por terem de fato participado no processo de produção de livros, muitas vezes se apropriando das máquinas e imprimindo obras de outras mulheres. Uma das primeiras mulheres a comandar uma tipografia, no Novo Mundo, foi Ann Smith Franklin, na colônia de Rhode Island. Em 1735, seu marido faleceu deixando seus equipamentos de impressão do jornal da província, o Rhode Island Gazette, sob sua tutela. A expressão “Novo Mundo”, aliás, se popularizou por causa de uma carta do naturalista florentino Américo Vespúcio. Retornando da sua terceira viagem para além do Atlântico em 1502, ele escrevera para seu empregador, Lorenzo de Medici, um relato sobre a flora e a fauna avistados nos territórios que hoje são parte do litoral brasileiro. O Mundus Novus fez sucesso, foi reimpresso e traduzido algumas vezes e acredita-se que esse seja o primeiro documento público mencionando o Brasil.
Uma outra curiosidade sobre a carta de Vespúcio foi a possível omissão de certos detalhes que teriam sido avistados pelo visitante. Imperava, na época, uma proibição expressa do Rei de Portugal para a veiculação de informações sobre qualquer coisa relacionada às suas recém descobertas colônias na América do Sul. O receio era justamente “vazar” para exploradores e bisbilhoteiros alguma informação-chave sobre os recursos naturais das colônias. De fato, qualquer material impresso em Portugal precisava passar por um crivo de três entidades diferentes: a censura papal, a censura do Santo Ofício e a autorização do Desembargo do Paço (censura do reino). Esse foi um dos fatores que causou um certo atraso na chegada da tecnologia de impressão com tipos no Brasil: foi só em 1808, com a vinda da família real, que foi instalada oficialmente uma prensa tipográfica em território nacional.
Diferentemente da colonização espanhola, os portugueses, de início, não estavam tão interessados em um estabelecimento fixo para as suas recém-invadidas terras americanas. A ideia era criar pontos de descanso e abastecimento para facilitar a chegada dos navios nas colônias portuguesas que ficavam na Ásia, como Goa (Índia) e Macau (China). Lá, inclusive, havia registros de prelos tipográficos em funcionamento, operados por jesuítas em missões de catequização. Em tais assentamentos orientais, a presença da tipografia voltava-se para a reprodução de documentos, chancelas e despachos, além da proliferação dos materiais litúrgicos.
A mais famosa tentativa de instalação tipográfica brasileira foi a oficina de impressões que operava clandestinamente no Rio de Janeiro em 1747. Fundada por Isidoro da Fonseca, o experiente tipógrafo lusitano inaugurou seus trabalhos imprimindo um livro-homenagem de 22 páginas sobre a chegada do sexto bispo do Rio de Janeiro, D. Frei Antônio Malheiros. O título, como já antecipamos, é longo: Relaçaõ da entrada que fez o Excellentissimo, e Reverendissimo Senhor D.Fr. Antonio do Desterro Malheyro Bispo do Rio de Janeiro; em o primeiro dia deste prezente Anno de 1747. havendo sido seis Annos Bispo do Reyno de Angola, donde por nomiação de Sua Magestade, e Bulla Pontificia, foy promovido para esta Diocesi.
A notícia da atividade tipográfica ilegal de Fonseca atravessou o oceano e chegou aos ouvidos do rei, que teria emitido no mesmo ano uma “ordem de sequestro” para todos os materiais de impressão encontrados no território da colônia brasileira. Isidoro da Fonseca ainda teria tentado apelar à coroa em uma carta de 1750, na qual pedia pela autorização oficial para reabrir uma nova oficina. Sob justificativa de que, em solo português, a produção de livros se dá com mais facilidade e rapidez, o rei nega autorização, fazendo com que a tipografia brasileira tenha acabado por não se estabelecer durante os tempos de colônia: um claro contraste aos territórios vizinhos controlados pela coroa espanhola.
É curioso observar como Isidoro tentou burlar o sistema de autorizações da coroa portuguesa: nas últimas páginas da Relaçaõ, temos uma troca de notas de autorização entre o próprio bispo Malheiros e um tal Cristóvão Cordeiro, também pertencente à Ordem dos Jesuítas e então membro do corpo de professores de um colégio do RJ.
A rigidez da coroa portuguesa após esse episódio adia em mais algumas décadas o início da impressão de livros no Brasil. Há, porém, uma teoria em disputa que prega o seguinte: as missões assentadas mais à oeste, nas margens do Rio da Prata, receberam uma prensa tipográfica por volta do ano 1700, em territórios que, hoje, fazem parte do nosso país. Tal feito se deu por ordem de Giovani Battista Ferrusino, missionário italiano eleito procurador da Província do Paraguai em 1632. Após visitar o local, o jesuíta retornou à Europa e pode encontrar seus superiores em Madrid e Roma entre 1632 e 1638. Nessa ocasião, teria mencionado uma demanda por uma oficina de impressos para o trabalho dos jesuítas nas reduções da América do Sul.
Há historiadores que defendam que isso aconteceu onde hoje fica a cidade de Guaíra, no estado do Paraná. Contudo, a região, na época, tinha como único referencial de delimitação o Tratado de Tordesilhas, que a dava como parte da porção espanhola do continente. Acredita-se que um dos primeiros livros impressos por lá foi uma versão bilíngue (espanhol e guarani) do livro De la Diferencia entre lo Temporal, Y Eterno: Crisolde Desengaños con la memoria de la eternidad, Postrimerias Hvmanas, Y principales Misterios Divinos, escrito pelo padre Eusébio Nieremberg, um missionário jesuíta alemão cujos trabalhos se tornaram bastantes populares na região da península ibérica.
Todos esses documentos são suspeitos: era uma prática comum declarar cidades propositalmente errôneas na folha de rosto, omitir nomes de impressores ou usar pseudônimos para despistar a censura do Tribunal do Santo Ofício. Quando a tipografia começou a se popularizar como tecnologia, os poderes da igreja entraram em crise, num misto de sentimento de ameaça de autoridade e oportunidade para propagação da palavra divina e conversão dos povos dos continentes recém-descobertos pelos europeus. A censura esteve sempre presente na história da tipografia.
Esses são alguns achados que apareceram no trajeto da minha última publicação acadêmica. Por motivos de adesão ao tema, limite de palavras e escopo do estudo, deixei para apresentá-los aqui pelo substack. “A mentalidade renascentista e a tipografia tardia no Brasil” está disponível para acesso gratuito no periódico Estudos em Design.
Referências
Barros, J. D. E. D. (2012). Impressões de um Tempo: a tipografia de Antônio Isidoro da Fonseca no Rio de Janeiro (1747-1750). Universidade Federal Fluminense: Dissertação de Mestrado.
Gauz, V. (2013). Early printing in Brazil. Bulletin du bibliophile, (1), 23-47.
Hallewell, L. (2012). O livro no Brasil: sua história. 3ª ed., São Paulo, Editora da USP.
Hendrickson, D. S. (2018). Early Guaraní Printing: Nieremberg’s De la diferencia and the Global Dissemination of Seventeenth-Century Spanish Asceticism. Journal of Jesuit Studies, v. 5, n. 4, p. 586-609.
Moraes, R. B. (1965). O bibliófilo aprendiz: prosa de um velho colecionador para ser lida por quem gosta de livros, mas pode também servir de pequeno guia aos que desejam formar uma coleção de obras raras antigas ou modernas. Companhia Editora Nacional.
Walker, G. (1987). Women Printers in Early American Printing History. The Yale University Library Gazette, 61(3/4), 116-124.