O filtro solar funciona da seguinte maneira: seu principal composto é um emoliente, que é uma espécie de creme oleoso homogêneo, composto por lipídios. Lipídios são pequenas cadeias moleculares de carbono e hidrogênio, chamadas “ácidos graxos”, finalizadas por um álcool na extremidade. Esse álcool não é o álcool de beber ou de limpar as mãos antes de se servir no buffet livre. É o nome que a química dá para moléculas que se arranjam a partir de ligações do carbono com o hidrogênio e o oxigênio.
Civilizações antigas, como os gregos ou os egípcios, usavam óleos naturais como emolientes. Azeite de oliva, o óleo de farelo de arroz, veja lá. Os lipídios presentes no emoliente aderem à epiderme — nome dado pela ciência para a camada mais externa da pele humana, essa parte visível e colorida do sistema tegumentar. Lipídios aplicados por ali impedem que a epiderme se desidrate, isto é, que perca água. A água é composta por várias moléculas de hidrogênio e oxigênio, as quais formam um composto líquido (à temperatura ambiente) capaz de reter sais minerais e outras coisas microscópicas.
Tudo estaria ótimo assim, se não fosse por esse detalhe terrível que eu vou revelar agora: a luz solar se comporta tanto como partícula quanto como onda. Uma onda é uma emanação energética propagada pela sua capacidade ondulatória, medida por meio da frequência, isto é, o número de ondas por um intervalo de tempo. Existem ondas legais, como as ondas de rádio, cuja interpretação feita por um receptor (como uma antena) é logo convertida em sinais sonoros. Eu digo que esse tipo de onda é legal porque o sinal sonoro em questão pode ser, por exemplo, uma música da banda canadense Arcade Fire. Uma banda é um conjunto de pessoas treinadas para colaborar na propagação de ondas sonoras harmonicamente.
Existem, entretanto, ondas péssimas. Elas oferecem perigo. Estou falando, precisamente, das ondas ultravioletas. Essas ondas receberam esse nome porque, mais ou menos no início do século XIX, o cientista prussiano Wilhelm Ritter estava seguindo a tendência dos demais curiosos da região e se compenetrando em experimentos com prismas. Prismas são cristais que dividem a luz solar no seu espectro visível de cores. Um cristal é um amontoado de átomos de carbono espremidos de um jeito específico. Quando a luz penetra na superfície do prisma em um determinado ângulo, ela vai se dividindo e as ondas mais agitadas se separam das ondas mais tranquilas. Essa diferença de agitação é percebida pelos nossos limitados olhos humanos como uma diferença de cor.
Ritter tinha ouvido falar que outro investigador do insólito, seu xará William Herschel, havia publicado algumas notas sobre o que chamava de “radiância” ou “raios fazedores de calor” localizados além da porção vermelha da luz solar — a porção que mais lentamente se arrasta por dentro da massa prismática. Materiais expostos a essa parte não-visível da luz solar deixavam o termômetro mais quente do que em outras porções. Um termômetro usa um líquido volátil, como o mercúrio, para medir mudanças de temperatura. A temperatura é o atributo científico usado para definir um grau de agitação molecular para as substâncias. Quero dizer, é claro que as moléculas estão se agitando sempre, o tempo todo, mas às vezes elas podem se agitar mais.
A ideia de Ritter foi dar uma olhada se no polo oposto do espectro visível da luz, isto é, na região violeta, os raios esfriam o termômetro em vez de esquentá-lo. Um pressuposto lógico, dada a dualidade “quente-frio” à qual estamos habituados. Chá: quente. Sorvete: frio. Floresta tropical: quente. Tundra antártica: frio. Não foi muito bem isso que Ritter descobriu. Contrário ao seu palpite lógico, o que o observador de prismas pôde constatar é que há também uma radiação “ultravioleta” presente na luz solar, capaz de aquecer termômetros tal e qual sua vizinha infravermelha. A partir daí, outros indivíduos da ciência puderam explorar as consequências da presença dessas ondas problemáticas no sol. Já no século XVIII era sabido que os lipídios dos emolientes não são capazes, por exemplo, de bloquear os efeitos violentos da radiação ultravioleta na pele e, portanto, um filtro solar precisa também de elementos que consigam a) refletir os raios ultravioletas; ou b) absorver esses raios antes que eles cheguem a encostar na epiderme.
Desde então, há uma série de homens e mulheres compenetrados na tarefa de descobrir ingredientes adicionais para os filtros solares. É possível usar pequenos compostos metálicos microscópicos, ou também cadeias moleculares polifenólicas, chamadas de “taninos”, que apresentam excelente capacidade de absorção de raios ultravioleta. O filtro solar vai se encorpando, ele vira um creme ou alguma outra coisa pastosa, com um cheiro característico. Há quem diga que o cheiro é “de praia”, embora, na verdade, a praia, sujeita ao agrupamento de pessoas, é que tenha “cheiro de protetor”.
Consequentemente, ingredientes adicionais também deixam o filtro solar um pouco mais caro. O funcionamento do produto não é uma questão puramente tecnológica, mas social. Entram em cena homens e mulheres compenetrados em deixar o filtro solar acessível para pessoas diferentes, com necessidades diferentes e também com quantidades de dinheiro diferentes. Essas camadas de diferença são um pressuposto lógico do agrupamento em escala macroscópica de seres vivos.
A maneira convencionada de codificar o grau de acessibilidade de um protetor solar é pelo seu preço, que varia conforme a marca de cada filtro, mas, mais importante, varia também de acordo com o “fator”. O fator é o nome popular que denota a capacidade de proteção do filtro solar. Na verdade, cá entre nós, ele indica a concentração de ingredientes especiais antirraios-ultravioletas em meio ao emoliente. Um fator mais alto é sinal de maiores quantidades, o que faz com que uma aplicação do filtro dure por mais tempo. Mesmo assim, homens e mulheres compenetrados no estudo da manutenção e cuidados da pele indicam reforçar a aplicação da solução de tempos em tempos, não importando o fator.
Tal prospecto recomendatório se dá como consequência lógica da exposição prolongada à luz do sol. O sol é uma bomba gigantesca que vem explodindo há 8 minutos, sem parar, a 150 milhões de quilômetros do nosso planeta.
Na primavera de 2020, eu ganhei uma pequena cicatriz embaixo do olho esquerdo. Quase não dá para ver, mas é porque ali ficava uma pinta estranha, que volta e meia aparecia mais avermelhada, descascando. Após os resultados de uma biópsia, a revelação: a pinta estranha era, na verdade, um carcinoma. O culpado: nosso astro-rei, o sol, em seu incessante bombardeio de radiação. Nunca fui de me preocupar muito com protetor solar, mas, de lá pra cá, incluir esse item no meu orçamento mensal gerou algumas dúvidas sobre sua eficácia, funcionamento e qual marca irrita menos os olhos. Esse texto foi publicado originalmente, em versão resumida, na primeira edição da Caça & Pesca, a revista da Contravento, nos términos de 2022.
Devo perder as esperanças de um dia inventarem um filtro solar em cápsulas? Implante? Chip?
só me resta citar um pensador contemporâneo: aulas, cria