A filosofia representada por pessoas batendo boca na Internet
Vamos rir mas vamos refletir também
Às vezes estou de bobeira, assobiando, com a mão no bolso, caminhando pela Internet, e acabo na situação de testemunha ocular das mais diversas e não-solicitadas intrigas que a humanidade pode proporcionar. Lembremos: o que chamamos de Internet é, muitas vezes, nada mais que o pior e mais gasoso ambiente tóxico para arrumar conversa com alguém, sobretudo com desconhecidos em redes sociais que não tem nada a perder além do tempo dos outros.
Nessa mistura de desinibição e vontade de por em prática as discussões ensaiadas durante o banho, surgem diálogos cujos registros acabam me fazendo lembrar de algumas ideias filosóficas. Eu saco o Photoshop da minha maleta e vou postando esse tipo de meme pedante e bobo no Twitter, fato que costuma gerar dois tipos de reação: as pessoas passam reto e ignoram, ou respondem reclamando que não entenderam muito bem. Não tenho culpa: pedantismo e bobeirice são dois dos quatro pilares da Internet (os outros são os fetiches sexuais e as fotos de gatinhos), então, antes que o Elon Musk decida acabar de vez com seu novíssimo brinquedo digital, vou trazer essas imagens pra cá. Com alguma dose de intrepidez, tentarei contextualizar cada diálogo selecionado:
O rei babilônico Hamurabi tornou-se mais conhecido pelo suposto zelo que tinha para com o próprio povo do que pelas suas conquistas e expansões territoriais. De fato, ele gostava tanto de mediar discussões e resolver intrigas entre os cidadãos (uma espécie de Márcia Goldschmidt do Crescente Fértil) que desenvolveu um conjunto de leis em um código exposto em praça pública, com mais de 200 formulações do tipo “Se X acontecer, a consequência deverá ser Y”. Essa sistematização legislativa é uma das mais antigas que chegou ao nosso conhecimento, recebendo o nome de Código de Hamurabi.
Qualquer sistema de leis, entretanto, é um reflexo da própria sociedade que o concebe. O Código tem fama de ser violento porque algumas das formulações seguem a lógica da lex talionis, isto é, tentam equalizar a ação da consequência (olho por olho). Nas seções em que Hamurabi propõe leis para as dinâmicas familiares e sobre a propriedade, transparecem as formas de organização babilônica baseadas em classes sociais, valendo-se de compensações financeiras para sugerir punições diferencias se a pessoa era escravo, mulher, criança etc. Achei que os argumentos apresentados nesse print do falecido Orkut tem uma vibe meio Idade do Bronze em suas entrelinhas.
Figura que, muitas vezes, passa despercebida entre os pensadores que propuseram críticas ao modo de produção capitalista, Lafargue acaba sendo lembrado principalmente por ter sido genro de Karl Marx: de origem cubana, o então ativista da Associação Internacional dos Trabalhadores casou-se com Laura Marx após sua mudança para Londres e, como era de se esperar, deu muito orgulho ao sogrão.
A obra mais famosa de Lafargue é seu livro-panfleto O Direito à Preguiça, publicado em 1880. Seu argumento central é o de que a sociedade vive uma ilusão de amor pelo trabalho. Como uma espécie de “dogma”, as pessoas são condicionadas por instituições (principalmente a religião) a acreditarem que trabalhar é algo intrinsicamente bom, e por isso algumas aberrações como a exaustiva jornada de trabalho das fábricas acabam se justificando. Para Lafargue, o trabalho deveria ser repensado: sua centralidade em relação à vida deveria dar lugar ao lazer, a formas mais legais de ocupar o tempo (escrever poesia, caminhar na praia, ficar acordado até tarde secando o mengão).
São Tomás de Aquino corresponde a uma espécie de linhagem de filósofos que se conectam a partir de uma necessidade de assimilar a doutrina Cristã ocidental ao neoplatonismo da antiguidade clássica. Isso significa, dentre outras coisas, a necessidade de encontrar argumentos para a existência de Deus e outras tarefas ingratas.
Nesse icônico print do zap, me parece que o foco do pai da menina na grafia correta da palavra “Deus” soa um tanto próximo da extensa argumentação de Tomás de Aquino, cujos pressupostos desembocam na ideia de que o mundo sobrenatural (no sentido de estar “acima” da natureza) está sujeito a leis próprias, cuja interpretação depende da fé e não das ciências naturais. Nunca esqueça disso.
Estoicos, Cínicos e Epicuristas foram os pensadores que se estabeleceram após o período Helenístico na região da Grécia, isto é, naquela completa zona que se instalou ali após a morte de Alexandre, o Grande. Alguns historiadores atribuem os aspectos principais dessas doutrinas como uma resposta ao “domicídio” que a população grega estava sofrendo: a dispersão de sua população e distanciamento das cidades-estado e seus valores originais.
Nesse contexto, a escola fundada por Epicuro, um autoproclamado “médico das almas”, tinha como princípio básico oferecer um tipo de educação voltado para a felicidade, autossatisfação e interpretação positiva da vida. Não há um consenso sobre o que, exatamente, acontecia no Jardim de Epicuro. Há quem defenda, exageradamente, que era uma casa de prazeres, orgias e festas, e há quem diga que era um espaço de aprendizado, uma espécie de comunidade sustentável, artística e de plena satisfação das necessidades físicas. Seja lá como for, Epicuro era um cara que sabia se curtir.
Os sofistas praticavam uma espécie de advocacia misturada com pedagogia, marketing e uma pitadinha assim de malandragem. Eles eram conhecidos na Grécia antiga como uma classe de profissionais itinerantes, que viajavam pelas cidades vendendo seus serviços como articulistas ou professores: contratando um sofista, você poderia pagá-lo para convencer uma autoridade local sobre a importância de aumentar os preços dos produtos que você vendia na praça todas as manhãs, por exemplo. Isso deixou um certo cidadão ateniense um tanto revoltado.
Sócrates tornou-se famoso, pelas palavras de Platão, por perambular pelas ruas enchendo o saco dos transeuntes com perguntas inconvenientes. “Por que você comprou essa coisa? Isso te deixa feliz? Você acha que a felicidade, então, está atrelada ao ato da compra? Você seria feliz se pudesse comprar todas as coisas do mundo?” e assim por diante. Esse “método socrático” baseia-se em pentelhações que visam, sobretudo, ensinar ao interlocutor sobre a sua própria e fundamental ignorância e tendência a, consequentemente, ser persuadido por sofistas mal-intencionados. Reza a lenda que a população grega ficou tão sacuda com Sócrates que o obrigou a escolher entre parar de importunar as pessoas ou a pena de morte. E foi aí que o filósofo declamou uma das suas mais célebres frases*: prefiro morrer do que perder a vida…
A obra de Lippmann definitivamente tem grande peso na história do desenvolvimento do pensamento econômico moderno e nos estudos sobre comunicação e cultura das massas — o que não quer dizer que esse peso seja, necessariamente, benéfico. Tendo publicado seus escritos enquanto testemunhava a fragilidade dos sistemas democráticos europeus, Lippmann entendia que o conceito de “opinião pública” era, na verdade, uma distorção da realidade e que, portanto, não poderia servir como base para sistemas de governo democráticos.
Consequentemente, a filosofia proposta por Lippmann é interpretada como sendo um tanto elitista. Não que o nosso colega estudante de direito seja uma correspondência direta ao que Lippmann esteja propondo, mas, enfim, é o tipo de pensador que essas opiniões equilibradas e nada prepotentes acabam me lembrando.
A resiliência do pensamento marxista se deve, sobretudo, à perspicácia desempenhada pelo barbudão e seus conceitos usados para interpretar as dinâmicas do modo de produção capitalista. Por exemplo, a ideia de alienação segue extremamente potente em um mundo caracterizado pelo trabalho cada vez mais segmentado e com profissionais sofrendo precarizações diárias: trabalha-se mais e ganha-se menos, um jogo no qual o real valor do próprio esforço se perde. Dentre os vários campos influenciados pelo marxismo, entretanto, o maior impacto pode ser observado na História: ao propor uma crítica social para o capitalismo, o foco do historiador muda e o tipo de documentação que pode ser considerada como evidência para fatos históricos ganha escopo. Os estudos contemporâneos que centralizam seus olhares, por exemplo, no gênero ou no colonialismo, são grandemente influenciados por Marx.
Ou seja, se você quiser pesquisar a história da construção de um hospital, é interessante considerar não apenas os fatores políticos ou documentos oficiais sobre esse objeto. Quem autoriza a obra e inaugura o prédio tem lá sua importância, mas pesquisar também sobre as condições do trabalho envolvido na construção pode revelar alguns detalhes picantes. Quem eram essas pessoas, de onde elas vieram, o quanto foram pagas, para onde foram depois, quem são seus grandchildren…
Poligamia, relacionamentos e métodos para lavar carne de frango estão sempre no topo da categoria Desgraça Mental quando aparecem como tema de discussões no Twitter. Porém, quase todas as brigas seguem uma espécie de roteiro. Alguma celebridade vira notícia, alguém solta um diagnóstico precoce sobre a vida amorosa sendo jogada aos lobos, outra pessoa aparece para dar aquela carteirada fundamental de “não é bem assim” e usa a própria vida para justificar universalmente as mais pontuais e objetivas circunstâncias sobre um evento. O ciclo, embora saturado, trágico e pouco eficaz para produzir reflexões úteis para a vida do cidadão brasileiro, tende a se repetir a cada 3 dias com extraordinária assiduidade.
Francis Bacon é lembrado como um membro da Trupe do Iluminismo por ter proposto uma espécie de sistemática para formalizar o conhecimento científico. A ideia de “ciência” é um tanto moderna: hoje usamos esse termo para nos referirmos a um conjunto específico de conhecimentos, os quais valem-se de um mesmo “método científico”. Segundo Bacon, esse método deveria partir de alguns princípios como a experimentação e a validação por pares. Ou seja, no lugar da evidência anedótica, isto é, dos testemunhos pessoais serem a fonte do conhecimento, eles deveriam dar lugar ao testemunho socialmente compartilhado dos fatos. Por isso, lembre-se de trazer dados estatísticos da próxima vez que for defender o fim da monogamia.
Um dos temas sobre os quais debruçou-se o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard foi o da teodiceia. Argumentos sobre as contradições da natureza de Deus são frequentes desde a antiguidade clássica, quando os sofistas gregos começaram a propor que se os deuses existem, eles deveriam ser feitos de átomos como qualquer coisa no mundo. Em tempos mais recentes, um debate recorrente é sobre a origem do sofrimento. Se o sofrimento existe em um mundo criado por Deus, então ou esse Deus não é onipotente, pois permite que o sofrimento tenha surgido, ou ele é um sádico, pois criou o sofrimento de propósito. Ou, pior ainda: Deus pode não estar nem aí! ocupado com outras coisas, distraído, jogando Overwatch etc.
A forma que Kierkegaard encontrou para contornar esse questionamento foi propor uma inversão de lógica: o sofrimento existe justamente porque é por meio dele que o ser humano transcende sua temporalidade. É como se sofrer nos lembrasse que essa vida é momentânea, mas que a recompensa é eterna. O pensamento religioso, para Kierkegaard, seria sofrer e encarar tal sofrimento como a condição paradoxal humana, pois se Deus não existisse, não seria necessário sofrer para lembrar dele. No fundo, a crítica existencialista de Kierkegaard era dirigida à própria Igreja, que vinha perdendo relevância em um mundo cada vez mais secularizado por se distanciar dos verdadeiros propósitos da alma.
Esse clássico da Internet não poderia ficar de fora, e eu confesso que não sei se a física newtoniana é a melhor referência para gabaritar a pergunta de Gustavo Leme. De fato, foi Galileu quem anteriormente teria proposto que objetos em queda livre estão sujeitos à mesma aceleração, independente da massa, mas as três leis de Newton são meio que o arroz e feijão dos problemas da física. A pergunta de Gustavo não está bem formulada o suficiente para deixar de ser problemática, mas podemos pressupor que os carros estão um do lado do outro, como se apostando corrida. Então, mantendo a exata mesma velocidade e, desconsiderando o atrito e a resistência do ar, o carro pica (um Citröen Picasso?) e o Celta 2012 ficarão um do lado do outro… eu acho (sou de humanas).
A história da filosofia é permeada por intrigas, ataques, dissidências, fofocas e rompimentos. Desta última categoria, um dos casos mais famosos é a completa revolta que alguns dos mais proeminentes estudantes de Heidegger travaram contra o seu mentor. Também pudera: o filósofo alemão acabou se envolvendo com o governo nazista e isso provocou críticas duras de vários nomes que passaram por sua tutela na universidade de Freiburg. Por exemplo: Herbert Marcuse, Hans Jonas e, talvez o caso mais emblemático, Hannah Arendt.
Arendt conseguiu se refugiar nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. Em solo norte-americano, pode desenvolver uma série de obras nas quais ponderou sobre política, sistemas de poder e as origens do totalitarismo. Em seu livro Eichmann em Jerusalém, Arendt reúne as observações que escreveu ao testemunhar o julgamento de Adolf Eichmann, um burocrata nazista que trabalhou nas operações dos campos de concentração durante o Holocausto. A crítica de Arendt abrange todo o escopo do julgamento, tanto nas táticas usadas pela acusação quanto nas palavras e argumentos usados pela defesa. Em síntese, o que ela aponta pode ser resumido pelo conceito da “banalidade do mal”, isto é, uma interpretação dos atos do burocrata como sendo de natureza praticamente mecânica, uma obediência cega aos ideais do partido num contexto de completa ausência de reflexão ou raciocínio crítico. É desta forma que os mais hediondos crimes tornam-se viáveis em um regime totalitário, no qual se dilui a agência das pessoas ao longo de um espectro ideológico mantido pelo fascismo. Denso, complexo e bastante pertinente para quem estuda ética e moral. Um livro bom pra postar no Instagram se você quer mandar indiretas pras pessoas.
A sociologia bourdieusiana desdobra alguns conceitos do marxismo em chaves muito eficazes para compreender como a sociedade contemporânea vem se organizando. Se você tem interesse em compreender fenômenos como as formas simbólicas pelas quais um grupo social se diferencia de outro (por exemplo, pichadores versus grafiteiros), talvez uma leitura de Bourdieu lhe ajude a fundamentar algumas ferramentas de análise.
Um dos conceitos que Bourdieu elabora é o de capital cultural. O “capital”, segundo Marx, se descreve pela acumulação do trabalho, seja ele materializado (moeda, posses, títulos) ou corporificado (força de trabalho). Mas essa acumulação também pode se dar em uma ordem simbólica, ou seja, é possível que uma sociedade crie alguns mecanismos pelos quais a ideia de “cultura” passe a ser vista como algo que pode ser transferido, herdado ou até mesmo aprendido por meio do consumo de coisas específicas, ou de um refinamento da linguagem, ou até mesmo pelo acesso a alguma forma especial de produto midiático. Graças a essa capitalização da cultura, é possível que uma pessoa ache que outra “não tem cultura” se ela não souber onde encontrar os melhores memes da Internet (embora todos nós saibamos que trata-se do Site dos Menes).
Pabllo Vittar retornou a um tuíte seu de 2012, o qual trazia uma citação de Nietzsche sobre os demônios que habitam dentro de nós, e reagiu a esse tuíte com “Uiiii mds kkkk”. Seria possível tirar uma lição filosófica desse momento? Talvez uma menção ao eterno retorno do próprio Nietzsche? Calma lá, tenhamos mais atenção. Assim como Pabllo Vittar, Clément Rosset demarca seu território para pensar o real a partir de uma análise de Nietzsche e de outros filósofos que optaram por um posicionamento não-metafísico para a existência do que aí está.
O que se aceita, portanto, é o caráter imanente da vida. Uma postura não-trágica, nesse sentido, seriam as várias formas de negar a realidade que a humanidade, em sua eterna criatividade, encontrou: ideologia, metafísica, religião e outras narrativas ficcionais. O pensamento trágico, conforme A Lógica do Pior, é a “ligação entre a alegria de existir e o caráter trágico da existência”. Vocês não acham bonito? Eu acho bonito.
O artista Hugo Ball foi o autor do primeiro manifesto dadaísta, em 1916.
* A frase de Sócrates é, na verdade, a seguinte: A vida não examinada não vale a pena ser vivida pelo homem. A que eu coloquei antes foi proferida por outro filósofo (Chaves).
A maioria desses textos foi elaborada com base em anotações e trechos dos meus cadernos e do Notion, por isso eu não me dediquei a buscar cada referência consultada. Vocês vão ter que confiar em mim. Lembrou de algum print de discussão de Internet engraçado? Manda pra cá e, se ninguém impedir, um dia eu faço uma “parte 2” para esse post.
Hahaha meu deus que texto hilário
aguardando ansioso a parte 2