Convite aos magnatas do streaming: 5 minutinhos no octógono
A seguir, uma não-solicitada opinião sobre a polêmica das plataformas de streaming
Duas pauladas recentes chacoalharam os ânimos dos consumidores das séries, filmes e outras mídias dos serviços de streaming. A HBO Max, para honrar algumas cláusulas do seu contrato de fusão com a Discovery+ (e, supostamente, para dar uma aliviada na carga tributária) optou por passar a navalha em parte do seu catálogo. Pra piorar, anunciou que iria também frear o desenvolvimento de projetos de novas animações — algumas, inclusive, praticamente em fase de lançamento.
O descontentamento foi tamanho que produtores, animadores e ilustradores passaram a imediatamente defender a pirataria como forma de continuar possibilitando ao público o acesso a essas obras. Como bem escreveu o meu amigo Fabio, uma alternativa para combater a efemeridade dos catálogos de streaming é um retorno à boa e velha coleção de DVDs: nada mais seguro do que ter seus personagens favoritos zelosamente guardados na prateleira.
Há ressalvas quanto a esse método: mídias físicas não são totalmente seguras. Além do desgaste do tempo, podem acabar dispersas em mudanças, perdidas em incêndios ou simplesmente destruídas quando em mãos erradas. Além disso, a ideia do acervo pessoal dá conta de apenas uma parte do recado, pois não basta garantir a sobrevivência da obra. É preciso, também, garantir sua circulação. O solavanco que a Warner proporcionou ao streaming da HBO é sinal de que as videolocadoras digitais não são garantia nem de uma coisa, nem de outra.
É claro que aqui, o que está em jogo, é um assunto ainda não muito amadurecido quando o tema é a indústria dos aplicativos de mídia como os streamings de vídeo, música e etc. Existem muitas diferenças entre um catálogo de produtos e um acervo de registros. Ambos oferecem itens e artefatos do interesse público, são interfaces para a interação entre autor e audiência. Mas o que separa as duas coisas é, essencialmente, a lógica na qual cada serviço é criado. A lógica do Spotify é uma lógica de mercado: o que aparece no catálogo é aquilo que faz sentido de um ponto de vista econômico. Obras e artistas geram retorno para a plataforma, que por sua vez mantém a atenção dos ouvintes e gera receita, devolvendo alguma porcentagem para esses artistas. O ganha-ganha do mercado fala mais alto quando o serviço opta por restringir parte do catálogo, elimina obras com base em cláusulas contratuais ou, simplesmente, não inclui no seu rol de produtos aquilo que não tem mais serventia.
Um acervo histórico ou arquivo de memória cultural não poderia operar nessa lógica pois seu conteúdo não é composto por mercadorias, e sim por registros que desempenham um papel para-econômico. Entram em cena os mecanismos que culturalmente justificariam algo assim: interesse público, patrimônio, homenagens ou, simplesmente, algo que é importante demais para ficar escondido. Enquanto a maioria dos serviços de streaming pagos está operando por uma lógica do mercado, isso não significa que a internet só permita esse modelo de operação. Serviços como a Wikipédia, que se mantém por doações e o Internet Archive se localizam fora do espectro mercadológico (e, consequentemente, continuamente em risco de silenciamento). Justamente por isso, a pirataria surge como alternativa por também ser uma operação cinzenta em termos mercadológicos: há quem diga que gera visibilidade para marcas e circula as mercadorias, mas não deixa de ser uma prática complicada em termos de propriedade intelectual (um tema cabeludo o suficiente para exigir outro texto para si só).
Por que continuamos confundindo serviços de streaming com acervos pessoais ou catálogos patrimoniais? A opção das plataformas digitais já é a mais popular para acessar conteúdos de qualquer espécie. Quando alguém sugere um filme, o normal é já ir direto no JustWatch descobrir se meu poder econômico, convertido em assinaturas, é suficiente ou se vou ter que abrir o bittorrent. Mas eu não tenho nenhum desses filmes ou músicas que assino. Quem tem é a HBOMax, eu apenas pago pelo acesso temporário. E, no fundo, não tem problema: não quero ter essas coisas. Eu não teria espaço pra guardar na minha casa todos os DVDs de filmes e séries que eu já assisti. Ouvir música pelo streaming é muito mais prático do que ter que ficar organizando a minha própria biblioteca musical.
Mas entendo o desconforto com a ideia de que o modo de existência desses objetos culturais está se distanciando da posse. É como se o streaming, principalmente nesses momentos de tensão diplomática entre conteúdo e comércio, deixasse claro que a fungibilidade do digital, quando submetida a uma lógica econômica do mercado, torna-se um novo problema em vez de se apresentar como a tão desejada solução do acesso universal à cultura.
A segunda tapona que mencionei no início do texto foi quando Neil Gaiman, o autor de Sandman, comentou no twitter que seria melhor se os fãs maratonassem a série assistindo aos episódios continuamente, e não deixando para ver um por dia ou um por semana, como os antigos babilônicos costumavam fazer na época da televisão. Se o lance da HBOMax evidencia a lógica de mercado dos serviços de streaming, os algoritmos de validação da experiência da Netflix, cujos parâmetros são, no mínimo, desgraçados, evidenciam algo pior: nessa lógica de mercado, o dinheiro não é a única moeda de troca. Não basta apenas pagar a mensalidade, é preciso oferecer também a nossa atenção.
Por sorte, os esquemas de coleta de dados ainda são rudimentares o suficiente para não notarem diferença entre uma tela ligada passando os episódios e outra com uma pessoa em sua frente, ativamente assistindo ao conteúdo. Não me espantaria, porém, se inovações tecnológicas em um futuro breve se tornem capazes de, de fato, mensurar e exigir o empenho cognitivo dos consumidores (volta e meia o Netflix pergunta se tem alguém ainda assistindo, né).
A nova temporada de Barry traduz bem essa tendência. Existem mecanismos em ação nessas plataformas que conseguem prever o sucesso dos seus conteúdos conforme os dados de consumo vão sendo parametrizados. O próprio Spotify tem planos de se tornar um "oráculo emocional", capaz de ler os sentimentos de seus ouvintes cruzando informações sobre gênero musical, frequência de plays e horários do dia nos quais essas músicas são ouvidas. Sempre que entro nesse assunto, descubro uma "maravilha" tecnológica nova: esse curioso artigo traz evidências de que dados de geolocalização podem ser usados para diagnosticar pessoas com depressão. É uma sensação engraçada, como se algo além de mim soubesse melhor quem eu sou graças aos sites que eu visito na internet.
A noção de que dados de atenção são novas moedas de troca na lógica de mercado dos streamings deveria estar nos deixando mais alertas quanto a natureza do que estamos consumindo. Muito provavelmente, conceitos como liberdade autoral, esmero artístico, relevância cultural ou profundidade estético-filosófica sejam pouco pertinentes se aquilo que traz lucro para a plataforma consegue fixar nosso olhar fazendo-a gastar menos dinheiro. Parece ser o que já rola no YouTube com os desenhos toscos feitos para crianças, mas nós não somos crianças querendo desenhos toscos... eu acho.
Não creio que essa discussão deva se enveredar pelo argumento de que é necessário abrir espaço para uma arte autêntica, desatrelada do mercado. Primeiro, porque eu não acredito que isso, alguma vez na história, já tenha acontecido. E, segundo, porque os domínios da lógica do mercado precisam estar sempre em debate. Karl Polanyi, em seu livro A Grande Transformação, deixa claro que o mercado é uma lógica muito eficiente quando o objetivo é a produtividade. Entretanto, é justamente por isso que seus domínios se ampliam se perdemos a perspectiva social. Existem coisas que, pela sua natureza, não podem estar inseridas nessa lógica. Fica fácil perder de vista medidas que já existem para garantir uma certa descontaminação do meio artístico pelo mercado: editais, iniciativas sem fins lucrativos, projetos de universidades ou até mesmo arquivistas e colecionadores empenhados em manter registros por puro hobby. Essas medidas, entretanto, surgem muito mais em caráter de resistência do que como um ponto comum do processo criativo.
Eu tento manter playlists no YouTube com vídeos que eu considero cruciais para a cultura da internet brasileira. É uma atividade, no mínimo, frustrante: o serviço volta e meia apaga vídeos que eu já tinha salvado, ou remove vídeos de usuários que os tornaram privados, deixando como indicativo apenas uma imagem de que ali havia alguma coisa misteriosa que não existe mais.
Existem métodos para recuperar esses vídeos, mas o recado parece claro: o YouTube não deveria ser tratado como uma ferramenta para arquivismo. A lógica do arquivo é a facilidade de acesso, a racionalização do acervo pela navegabilidade, a disponibilidade constante, uma ficha de status que permita a pesquisadores, visitantes e demais pessoas a confiar no sistema e a visitar os materiais guardados — ou seja, uma espécie híbrida de espaço público e privado ao mesmo tempo. Nem todos esses elementos de experiência são condizentes com a lógica do mercado. O YouTube não vê necessidade em me ajudar a recuperar esse vídeo, em manter a playlist completa. Esse não-arquivismo por design é o foco de vários debates que, por exemplo, defendem que devemos evitar guardar coisas importantes nas nossas linhas do tempo das redes sociais.
Não devemos depositar em serviços de streaming a responsabilidade do registro cultural. Por mais que eles sejam a plataforma e meio de expressão mais significativo para muitos artistas, dos mais experientes aos iniciantes, é necessário ver com olhos mercadológicos os seus catálogos: como uma lista de produtos para todos os gostos, gêneros e tamanhos, mas que pode se renovar a cada temporada. Justamente por serem catálogos configurados por essa lógica, eles estão sujeito a forças maiores, a tendências e influências que não necessariamente ressoam com nossos desejos de consumo. Mesmo que nos organizemos em manter cada um seu arquivo pessoal bem cuidado, seja ele físico ou virtual, isso não faz jus ao que se espera de um registro midiático. E acreditar que a pirataria é a única forma de fazer isso acontecer é dar a batalha como perdida.
(mas por enquanto é o que tem né rapaziada!! hehehe eitaa)
Bônus: último episódio do podcast Bolívar Comenta
Para quem, por sorte, não conhecia, meu podcast no qual falo abobrinha sozinho teve um novo episódio lançado essa semana: Bolívar Comenta #08 - Dica quente para candidatos