Proposta de abordagem não-biopolítica para a escolha do melhor esporte
Ou: como ser ligeiramente ofensivo para fãs de vários esportes ao mesmo tempo.
Infelizmente, por motivos óbvios, é impossível que um indivíduo humano consiga praticar todos os esportes que existem. Na verdade, é bem provável que, em média, ao longo da vida, tenhamos contato com não mais do que uma ou duas dúzias de modalidades. Algumas dependem muito mais de questões econômicas e poder aquisitivo para os equipamentos do que de disponibilidade de tempo, mas mesmo suplantando esse obstáculo socioeconômico, algumas desvantagens geográficas também impactam nesse cálculo. Em resumo, o esporte é algo que é consumido muito mais como espetáculo do que como prática pela vasta maioria da população mundial.
De fato, quando uma pessoa se dedica a um esporte profissionalmente, ela acaba encerrando sua janela de opções ainda mais, pois precisa condicionar seus músculos, estrutura óssea, dieta nutricional e patrocínios em torno dessa escolha. Um maratonista ainda pode jogar tênis de mesa, claro, mas vai ser difícil pivotar para algo mais arrojado como o sumô, e vice-versa. Tudo bem, a mudança de carreira é um fardo assombroso que não se restringe ao atletismo, mas o ponto que trago aqui nesse texto é outro.
É muito triste constatar que sempre que alguém tenta decidir qual é o melhor esporte, os critérios de escolha ainda estão fundamentados no discurso da prática e de seus supostos benefícios. "Natação é o melhor esporte pois trata de qualquer problema da coluna". "Boxe e Muay-Thai são os melhores esportes pois você aprende a dar soco, se defender". Nada disso faz sentido, pois pessoas diferentes possuem necessidades fisiológicas diferentes, e o posto do melhor esporte deve, acima de tudo, considerar a acessibilidade. Para piorar, nada impede que surjam novos esportes que pouco ou nada tenham a ver com a solidez do mundo real e sua violência: e-sports são verdadeiras exaltações do sedentarismo.
Outro critério possível seria de caráter psicológico: o esporte mais legal é o que causa mais emoção. A brecha epistemológica que esse inocente e preguiçoso critério abre é justamente o que pretendo abordar aqui: um esporte não precisa ser praticado para ser considerado bom.
O verdadeiro (e quiçá único!) critério para eleger o melhor esporte é o quão legal ele é de assistir. A seguir, listo alguns esportes cujo espetáculo eu pude presenciar e decidir se eu gostei ou não.
Futebol: vamos começar pelo mais popular. A vantagem estratégica que torna o futebol um esporte espetacular por natureza é o fato do seu game design restringir toda a ação a um campo muito bem delimitado. Isso significa que é fácil cercar esse campo com espectadores e, com alguma engenharia, empilhar esses espectadores com a ajuda de uma arquibancada ou andaime. Logo, cria-se o cenário perfeito para criar fãs na ordem de centenas de milhares para cada uma das 22 pessoas em campo. Os espectadores não precisam se mover, apenas acompanhar a bola com os olhos. É muito mais fácil do que assistir a uma maratona: a não ser que você esteja em cima de uma montanha bem alta ou que você corra acompanhando os atletas, ser torcedor de maratona só se tornou uma realidade com a tecnologia televisiva. Ou você poderia ficar aguardando na linha de chegada também, mas isso é muito mais sobre passar uma tarde com a galera do que torcer por um esporte.
O que define se uma partida de futibas é legal, no fim das contas, são dois critérios: o primeiro, não muito raro, é o laço de empatia. Se você gosta muito dos jogadores(as), ou da cor da roupa que eles(as) usam, você acaba querendo muito saber se eles(as) estarão felizes no fim do jogo. O outro critério é a técnica. Observar uma pessoa ser capaz de fazer algo impossível é sempre garantia de espetáculo, e no futebol a impossibilidade se cria de diversas maneiras. A começar por posicionar uma pessoa alta e com incríveis reflexos pra proteger a goleira. O critério da técnica aparece com recorrência como preferencial na maioria dos esportes aos quais alguém decide assistir. Ainda há um critério extra, que é o fator-surpresa. A possibilidade de surgir um cachorro correndo pelo campo é o que torna o futebol um dos mais incríveis esportes, na minha opinião.
Futebol americano: há algo de estranho e nefasto nesses esportes estadunidenses que os deixam particularmente difíceis de assistir. O american footbal é um caso que concilia regras crípticas de funcionamento com um intervalo de ação curto demais para sequer empolgar o público, apenas incomodá-lo. Os jogadores se organizam, o juiz apita, a porrada come solta, o juiz apita de novo, quem continua vivo vai se levantando e se organizando. Repete. O time que empurrar a bola para mais lá do campo faz o juiz dar um apito mais longo e todo mundo volta a se reorganizar no meio do campo. Nada muito complicado se não começassem a vir com o blá blá blá do sistema de medidas imperial e alegar que faltam ainda tantas JARDAS para um kickoff. Algo em mim me faz suspeitar que o apelo midiático do futebol americano está centrado nesse rápido intervalo de ação. Em poucos segundos o importante acontece e então os espectadores podem parar novamente de prestar atenção, mexer no celular, comer um hot-dog. Percebo uma lógica semelhante no baseball. Talvez, para pessoas que não conseguem ficar mais de 30 segundos prestando atenção em alguma coisa, esses esportes sejam legais.
Basquete: falando em coisas que se resolvem rapidamente, as partidas de basquete se assemelham mais a uma espécie de dança grupal do que a uma competição entre dois times. Há um ritmo tão concatenado entre as equipes que a alternância de movimentos de uma cesta a outra cria uma expectativa maior para os bloqueios e roubadas de bola do que para os arremessos. Acho que o basquete atrai o público do mesmo jeito que um hipnotizador atrai suas vítimas. O hipnotizador tem vítimas, certo? Não sei de que outra forma me referir a uma pessoa hipnotizada.
Natação: vamos combinar que a grande vantagem de ficar apenas assistindo aos esportes aquáticos é não precisar se molhar. Mas isso prontamente se reverte se estiver muito calor. Mas aí o legal de estar na piscina é não precisar se mexer, que é o oposto de qualquer esporte. Para quem assiste, a natação é muito confusa. Talvez, na época dos lagos e rios naturais, uma pessoa apostando corrida contra outra na água seria divertido, os obstáculos e animais selvagens garantiriam o fator-surpresa. Mas hoje, se não é um sensor me avisando quem chegou na beirada primeiro, eu nem consigo dizer o que estava rolando ali naquela bagunça de respingos e tensão superficial.
Fórmula 1: esporte de corrida de automóvel além de ser uma chatice do caramba, é uma barulheira desgraçada. Hahaha fui bem parcial nessa né. É porque eu realmente não gosto e não vejo graça, mas acredito no poder arquetípico da velocidade. Coisas se movendo rápido demais disparam gatilhos mentais, deixam a galera alucinada, com vontade de apostar corrida no semáforo etc. Nesse sentido, o que me comove é que os caras tiveram que criar tantas regras para o doping automobilístico que a engenharia dos carros acaba precisando seguir uma fórmula — e por isso o nome da modalidade. É o mesmo que ocorre nos exames antidoping dos atletas, mas nenhum esporte ganha o nome do corpo perfeito que o pratica. É como se o boxe passasse a se chamar "Músculos Grandes Naturais 1" (a numeração varia conforme os pesos).
Luta: já que toquei no assunto, assistir a lutas é sempre uma satisfação. Poder ver alguém apanhando e não sentir culpa é muito bom e quase correspondente às mais ancestrais necessidades fisiológicas. É uma pena que a burocracia das modalidades tenha criado condições para que a porradaria saudável acabe se convertendo, muitas vezes, em um agarra-agarra sem fim que demande visão técnica de um comitê especializado para decidir qual dos lutadores sofreu mais. A triste conclusão a qual eu chego é que assistir a um filme de luta, coreografado, é mais legal que assistir às lutas em si. Repousaria no estranhíssimo wrestling um meio-termo que, em sua indefinição, resolveria o impasse? Eu não sei, pois não me odeio o suficiente para me tornar um espectador de wrestling.
Vôlei: se eu tivesse que resumir a experiência de ser um espectador de vôlei em uma palavra, ela seria insistência. O jogo de vôlei moderno tem um ritmo acelerado, um oferecimento dos grandes impactos proporcionados por cortadas e saques violentos. Cada vez mais, os jogadores treinam para arrebentar os dedos e braços adversários e fazer a bola cair no chão. Justamente por isso, cada vez mais os mesmos jogadores precisam treinar para que ela jamais o faça. Assistir a um jogo de vôlei é presenciar a bola insistindo em continuar no ar, desafiando a gravidade, o olho seco do adversário e o clima horrível que se cria na quadra nos segundos que parecem se arrastar por milênios enquanto o ponto não acontece. É a mais absurda experiência esportiva da atualidade.
Hipismo: se assistir ao hipismo fosse divertido, as brilhantes e homogêneas pelagens dos cavalos já estariam cobertas de adesivos e tatuagens de patrocinadores. Em algum momento, o hipismo ficou tão chato que mesmo enchendo o percurso de obstáculos, barras, buracos e o caramba, poucas pessoas se mostram empolgadas com o espetáculo — tirando, obviamente, os parentes do jóquei (e do cavalo). O que atrairia o público para essa modalidade seria o bom e velho recurso da aposta monetária, que ainda move pequenas multidões para hipódromos. Mas há quem veja nisso mais uma das várias polêmicas filosóficas quando animais são envolvidos nos esportes. Afinal, a medalha é do cavaleiro ou do cavalo?
Skate: poucas atividades humanas gozam da mesma trajetória de sucesso do skate: de crime à modalidade olímpica. Assim como seu ancestral das águas, o skate se baseia na ideia de fazer coisas legais se equilibrando em uma tábua, e isso é muito mais interessante (e seguro) de assistir do que de praticar. Por sorte, os atletas do skate parecem não se importar com os artifícios e obstáculos absurdos que são impostos em seus caminhos para agradar os espectadores. Uma rampa de duzentos metros? Um campo cheio de escadarias e buracos? Uma jaguatirica solta perseguindo os skatistas? Em nome do entretenimento, esses guerreiros parecem estar dispostos a tudo.
Atletismo: o atletismo é o suprassumo da técnica. É a resposta para a primeira pergunta feita pelos ancestrais da raça humana: quão longe será que eu consigo jogar essa pedra? Repousa, na prática do atletismo, os limites da vida. O inalcançável e o incalculável. A doideira. O que diferencia uma atividade qualquer, por exemplo, escovar os dentes, de uma das várias modalidades do atletismo? Por que eu consigo ganhar uma medalha arremessando um disco, mas não trocando um galão d'água 20 litros? Eu gosto de pensar que no atletismo, de alguma maneira, está escondida a lógica que nos faz humanos. O esporte pelo esporte, em si. Às vezes eu me recordo dos inúmeros debates sobre o que nos diferencia dos outros animais. A hipótese da consciência humana é muito bonita, mas ela não diz muita coisa se considerarmos que, de fato, ainda não sabemos muito bem o que é isso. Fazer ferramentas? Também não, já que um corvo bem treinado consegue entortar um arame pra fazer ganchos e puxar comida pra fora de buracos. O polegar opositor? Também não. Linguagem? Difícil acreditar que esse fenômeno é só nosso. Eu prefiro acreditar que nossa essência, se ela de fato existe, é líquida: está no nosso suor. Desculpem a digressão filosófica, mas é que eu acho legal assistir ao atletismo nas olimpíadas.
Conclusão: uma luta de boxe-xadrez (chessboxing) funciona da seguinte maneira: os lutadores sobem ao ringue. Este contém, em seu centro, uma mesa com um tabuleiro de xadrez com as peças já posicionadas para o início do jogo. Ao soar do gongo, os atletas se sentam, se cumprimentam e começam a partida. O primeiro round dura três minutos. O gongo soa novamente, fazendo uma equipe de contrarregras subir ao palco também, para desmontar a mesa de xadrez e abrir espaço. Os lutadores se preparam, calçam luvas, recebem instruções do técnico, colocam o protetor dental e trocam socos por dois minutos. No próximo soar do gongo, a mesa volta ao ringue para mais uma rodada de xadrez. São oito rounds até o fim da partida. A vitória pode ser por esgotamento do tempo (a partida de xadrez tem um timer de 6 minutos para cada jogador), por xeque-mate ou por nocaute (mais raro). É muito difícil alternar entre os estados mentais de uma luta corporal e do esforço intelectual do xadrez, mas foi provavelmente esse contraste que fez o escritor francês Enki Bilal (risos) ter a ideia desse esquisito esporte.
Mas é aí que está o X da questão. Todos os esportes são muito esquisitos se você olha pra eles do jeito certo. A graça de assistir a essas modalidades estranhas é justamente saber que eu não gostaria de estar ali, apanhando enquanto penso na minha próxima jogada no xadrez. Mas não faz mal dar uma olhadinha em quem resolveu, por um motivo provavelmente auto justificável, estar ali, naquele momento.
Esse texto é baseado em uma conversa que tive com @Entuxo