Redenção por meio do consumo desenfreado de reality-shows
O fim do Big Brother Brasil 22 pode ter nos livrado de uma lamentável edição do reality show, mas não nos livrou do vazio existencial. É preciso mais bobajada.
A sensação de impotência pandêmica foi causada, sobretudo, pela condição de isolamento social. Não poder fazer nada, ficar em casa, esperar pela vacina e não tentar ser um estorvo para a civilização (vulgo, ficar roteando o coronavírus por aí) fez com que eu me sentisse ligeiramente chateado.
Lembro dos dois primeiros meses da pandemia como uma espécie de slice of life deprimente: sem muito o que fazer, aguardando notícias boas, tentando encontrar mecanismos de manutenção do otimismo. Uma das saídas foi navegar pelo catálogo da Netflix buscando alguma forma de entretenimento que obedecesse uma fórmula do tipo quantidade de tempo versus bobagem. Obviamente, os reality shows acabaram entrando no radar.
Nunca fui muito fã do formato. A primeira edição do BBB que eu acompanhei de verdade foi a de 2020 justamente por causa da catarse proporcionada em tempos de isolamento. Logo percebi que ali estava a chave para meu deleite. O bom de admitir que você gosta de Big Brother é não precisar mais de desculpas esfarrapadas, como falar que tem interesse no estudo antropológico que ele proporciona, ou no reflexo da sociedade que o microcosmo evidencia. Tudo isso é lorota, é tentar diminuir a obra pelo que ela realmente é: safadeza. Baixaria. Vergonha alheia e humilhação. Eu estava assistindo a outras pessoas sofrerem para me sentir menos miserável, e estava dando certo.
Com o fim da edição, porém, o retorno do recalcado ameaçou bater na porta. Eu precisava de mais distração para esquecer a ameaça biológica. Então aqui vai uma lista dos reality shows mais desgraçados que eu assisti nos últimos anos, e a lição filosófica de vida que cada um traz nas entrelinhas.
REA(L)OVE
Essa pérola japonesa traz uma premissa comovente: 9 homens e 9 mulheres são apresentados no início do programa. Ao longo dos episódios, eles devem se conhecer e tentar um envolvimento afetivo, para no fim propor um casamento. O problema é que cada participante tem um segredo terrível que será revelado em algum momento do reality show. A tensão repousa na decisão do par romântico, se ele manterá o relacionamento ou se o segredo revelado é horrível o suficiente para fazê-lo perder o interesse.
Os segredos dos participantes são os mais variados possíveis. Desde atores e atrizes pornô a pessoas muito endividadas, ou pessoas que já tiveram problemas com a lei (dentre os participantes, uma mulher trans cujo segredo era justamente sua identidade de gênero). Cá entre nós, nada demais. O pressuposto de que todos os participantes guardam segredos é apenas um atestado de que eles são pessoas normais. Inclusive, parece até que o reality show se esforça para forçar a existência de segredos horríveis em alguns casos: uma das participantes revelou que seu segredo horrível era... um divórcio. Mas talvez isso seja algo cultural, o Japão é um país um pouco mais machista do que estamos acostumados.
Conclusão: vale a pena. O constrangimento é real e os participantes criaram empatia quase imediatamente comigo. Torci para vários casais darem certo. Acho que, no fundo, um segredo só alcança a categoria de "segredo" pelo que ele significa pra própria pessoa, e não para quem a cerca. Possivelmente o maior tensionamento da categoria de "segredo" já feito, filosoficamente falando, foi quando João Kléber apresentou o casal cujo marido revelou ao vivo que era careca.
Vidrados (Blown Away)
É injusto colocar Vidrados em um ranking de shows selecionados pelo critério da bobajada, mas o que esse reality deixa de servir em termos de vergonheira, ele compensa pela êxtase e pelo esmero dos participantes. Sopradores de vidro são convidados a competir e, a cada episódio, um é eliminado. A competição é promovida por artistas profissionais, que fazem belas esculturas de vidro e, a cada dia, "sorteiam" um novo tema para os sopradores pirarem em cima, criando conceitos e fazendo suas belas obras.
Acredito que muito do apelo aqui esteja na complexa tecnologia de soprar vidro. Como pode esse material frágil e perigoso ter que ser feito dessa forma, em meio a vapores tóxicos, fornalhas ardentes e cacos pontiagudos? Muito do suspense está no momento da quebra, quando a peça de vidro precisa ser descolada do cano de sopro, manobra realizada deixando uma parte propositalmente mais fina e quebrando a escultura por meio de batidas no próprio cano. Isso é surreal. Esse momento me deixou preocupado várias vezes, pois é muito comum o participante, sob intensa pressão, quebrar tudo e ter que recomeçar do zero.
Conclusão: o som do vidro quebrando deve ter algo de arquetípico. Dispara os sentidos, faz o coração bater mais forte. E esse reality tem muito som de vidro quebrando. Minhas maiores reclamações como telespectador foram os critérios de seleção das melhores obras. Você já não espera muito de uma escultura de vidro, mas tinham coisas aparecendo ali na tela que me fizeram duvidar da minha sanidade mental.
Outros reality-shows na mesma pegada competitiva merecem atenção. Cozinhando o Impossível coloca duplas de engenheiros e confeiteiros pra desperdiçar comida fazendo barcos e carros de bolo e biscoito que precisam atravessar pontes, rios, etc. Crazy Delicious vale a pena mais pelo cenário e pela hostess (Jayde Adams, uma figuraça) do que pela balbúrdia culinária.
Amor, Verdade ou Consequência
Aparentemente os espanhóis gostam muito de separar casais. Nesse reality, os participantes são jovens sarados, selecionados para passar algumas semanas em uma praia paradisíaca com café da manhã colonial, piscina, drinks alcoólicos e todo conforto do mundo. Cada casal, porém, precisa se submeter a um computador de última geração que, por meio de um leitor dos movimentos dos músculos oculares, consegue detectar com precisão inquestionável se a pessoa está mentindo. Inquestionável.
Obviamente a baixaria rola solta, porque a produção do programa faz de tudo pra submeter os casais às situações mais tentadores possíveis: ex-namorados(as) são convidados a frequentar a casa, a bebedeira é promovida à exaustão, câmeras escondidas flagram a prática impune do famigerado papinho. Aí, como se não bastasse, cada conje pode submeter uma lista de perguntas que gostariam de ver passando pelo detector de mentiras. Se a pessoa mente na resposta, todos os participantes perdem dinheiro. O mais divertido é perceber que, já no segundo episódio, ninguém está mais nem aí pra grana e todo mundo só quer pegar os mentirosos no flagra.
Conclusão: esse show é uma grande lição sobre responsabilidade epistêmica. Você acha que as pessoas merecem ser responsabilizadas apenas por seus atos ou também deveriam responder pelo que pensam? Quando as convicções e crenças entram no terreno da punibilidade, ninguém está a salvo. E esse reality show é a demonstração das consequências dessa linha de pensamento. Você coloca um rapaz de sunga para se esfregar em uma mulher que está sofrendo por uma traição e depois pergunta: você se sentiu atraída pelo rapaz de sunga? Não? Então se prepare para o sotaque castelhano da máquina: Mentira.
Terrace House
A maioria dos reality shows parece seguir uma estratégia de casting voltada para maximizar o entretenimento, isto é, reunir as pessoas mais loucas e insuportáveis no mesmo espaço e deixar a magia acontecer ao vivo. Nesse reality japonês, a ideia parece se desvirtuar desse caminho. As 6 pessoas absolutamente normais que convivem em uma casa muito chique precisam apenas... passar o tempo, conversar, tentar dar um beijinho e olhe lá. Cercados pela opressora arquitetura modernista sem nada a oferecer de estímulo sensorial, os jovens precisam inventar coisas pra fazer, contar eventos da própria vida e, se tiverem coragem, em algum momento revelar seus sonhos de carreira. É como assistir aos seus colegas do ensino médio tentando desenvolver um embaraçoso romance ao longo de 2 semestres de aula de matemática.
Conclusão: fiquei meio em choque ao descobrir que uma participante do reality tirou a própria vida por causa do cyberbulling. Talvez a natureza contemplativa de Terrace House não tenha encontrado um público maduro o suficiente para apreciá-la. Eu me incluo nessa porque acabei dropando o reality depois do terceiro episódio. Caralho, nada acontece.
Solteiros, Ilhados e Desesperados
Convenhamos que esse esdrúxulo título português é muito melhor que "Single's Inferno". No reality show sul-coreano, jovens muito bonitos precisam conviver em uma ilha para formar casais por meio de cartinhas, jogos e outros gimmicks. Infelizmente as dicas e aberturas afetivas são muito sutis para um idiota como eu, então na maioria das vezes eu não entendia se um participante estava apenas tentando ser gentil ou se aquilo era uma maneira educada de demonstrar desprezo. Por algum motivo todos os rapazes se interessavam pela mesma menina, que recebeu o apelido de "boneca" aqui em casa. Eu e minha namorada damos apelidos para todos os participantes de todos os realitys. Nesse, a cavalona se apaixonou pelo executivo, que tinha alguns sentimentos pela princesa, a qual gostava mesmo era do cabellitchu's.
Conclusão: confesso que eu não esperava ver os participantes entrando em confronto físico nesse programa, muito menos como parte da gamificação planejada pela produção. Mas tudo bem, foi divertido mesmo assim. O grande efeito colateral é que agora eu sou fã de kpop.
Are You The One?
Ah, nada como uma baixaria em seu estado puro, cristalino. 10 homens e 10 mulheres, todos muito bonitos, com todos os dentes, precisam conviver em uma casa por algumas semanas. O objetivo é tentar formar casais, mas calma lá! Pois um computador abastecido com dados de ex-relacionamentos, preferências, gostos pessoais e fichas criminais já sabe quem é o match perfeito de cada participante. Então eles precisam ir conversando, bebendo, transando e brigando até descobrir quem são seus matches.
Conclusão: o norte-americano é um povo muito estranho.
Casamento às Cegas
Hahahaha! Esse é o reality show mais cruel já elaborado. Os participantes precisam conhecer seus pares românticos apenas pela voz, sem poder vê-los antes do pedido de casamento. Quando a revelação é feita, eles já estão fadados à convivência. Quem não casar, está eliminado. Todas as pessoas que assistiram a esse programa, tanto em suas versões estrangeiras quanto na aclamada edição nacional, parecem concordar em um ponto: homens são complicados. Casamento às Cegas evidencia alguns embates de gênero e acelera o aparecimento dos conflitos inerentes aos relacionamentos monogâmicos: conciliação de interesses, organização pessoal, finanças, se o cachorro gosta da pessoa, se é saudável se apaixonar por paraquedista, a lista vai longe. Acho que o mais interessante é de fato perceber como o gênero se consolida enquanto lente para analisarmos estilo de vida. Nada do que fazemos está separado disso. Se a ideia do gênero enquanto chave para análise é uma conquista recente dos movimentos feministas, um efeito da sua consolidação é o quanto suas questões transparecem nessas fórmulas de reality-shows que tentam formar casais. Há sempre um elemento diluído entre as conversas, uma pré-suposição das partes sobre seus papéis e sobre o que é permitido a cada um desempenhar dentro de mapas já traçados.
Conclusão: é estranho perceber que o conceito de casamento se permite uma elasticidade: não há mais um ritual tão bem estabelecido, basta um consentimento entre os dois indivíduos e o resto a produção do programa organiza. Eu penso nas culturas nas quais o casamento segue uma institucionalização mais rígida, como na Índia, onde a maioria dos casamentos é arranjado entre os pais dos noivos. O mecanismo de manutenção social se exerce pelo artifício do casamento, que apenas atua como uma formalização de um laço social, um detalhe na engrenagem. Em Casamento às Cegas, essa lógica é invertida e o casamento volta a ocupar um lugar de destaque, de desejo.
Ultimato: Ou Casa ou Vaza
Bom, falando em casamento. Essa novidade segue uma lógica duvidosa: os participantes selecionados são casais insatisfeitos, nos quais uma das partes deu um ultimato para ver se o casamento sai ou não. Aí eles são reunidos em um mesmo hotel e rola um troca-troca, os casais se embaralham e vão viver as próximas três semanas com conjes diferentes. É a receita da bagunça perfeita, porque isso deve gerar angústia, insatisfação e preocupação tão grandes que todos os participantes devem se sentir igualmente péssimos na mesma proporção. A baixaria é certa e, bom, o show consegue nos deixar realmente em dúvidas sobre qual seria o melhor destino para cada casal. Claro, quando você está com problemas no seu relacionamento, nada melhor do que se inscrever em um reality show!
Conclusão: o norte-americano é um povo muito estranho.
Bônus: Taskmaster
Obviamente, esse texto é apenas um cautionary tale sobre os perigos de se render a reality-shows pela necessidade de criar válvulas de escape que, eventualmente, irão falhar e nos jogar diretamente no colo da crise existencial. Nenhum funciona. O nível de bobajada nunca é o suficiente e as questões problemáticas da sociedade sempre emergem em meio ao caos.
Exceto, claro, em Taskmaster. Taskmaster é um game show britânico que convida comediantes para, a cada temporada, realizar tarefas-surpresa em gincanas que precisam ser vencidas pela sagacidade (ou pela insistência). Perante a aleatoriedade do universo, apenas a aleatoriedade do ser humano prevalece.
Conclusão: assistam Taskmaster.