Alerta: estão mandando a galera da internet fazer terapia
Justificativa epistêmica: não sei do que estou falando.
Eu pensei em começar um texto sobre isso há algum tempo, quando andava me fazendo a seguinte pergunta: qual é a diferença entre um psicólogo em um coach? Não me levem a mal, eu genuinamente gostaria de abordar essa questão do ponto de vista de alguém que não é nem uma coisa, nem outra*.
Eu fiquei intrigado com o caso do coach que levou pessoas para o topo de uma montanha em São Paulo e quase provocou um suicídio em grupo ao se perder e precisar do resgate dos bombeiros. Se você pergunta para um psicólogo o porquê de os coaches não serem confiáveis, dentre os principais motivos listados estão esses exemplos extremos de líderes motivacionais que inventam métodos pouco ortodoxos para criar momentos catárticos para seus clientes. Mas o que parece deixar os psicólogos especialmente cabreiros é o fato do coaching, muitas vezes, ter pretensões de ser visto como um possível substituto para a psicologia.
Acredito que o conceito popular do coaching hoje é que ele se trata de uma prática abraçada pelo mundo corporativo visando desenvolver pessoas para contextos profissionais. Isto é, dentro de uma ideologia liberal de mobilidade social, o coach "adota" um coachee, uma pessoa que receberá as orientações e conselhos do seu mentor, e o guia para uma determinada percepção de sucesso partilhada por ambas as partes. Embora usem o mesmo nome, é diferente do coach esportivo (que em português chamamos de "técnico") mas, curiosamente, a origem etimológica do termo vem dos treinadores de cavalos: era uma piada feita na Inglaterra por alunos das universidades que enxergavam seus mentores como "coaches" que os guiavam pelos percursos (em português, a palavra "cocheiro" compartilha da origem do inglês "coach". Legal né).
Do outro lado, a coisa é menos esclarecida. O que chamamos de psicologia é, na verdade, um guarda-chuva de teorias e abordagens que não apenas não concordam umas com as outras sobre como os seres humanos devem ser tratados, como inclusive se diferenciam em questões mais fundamentais, ontológica e epistemologicamente falando. Os objetos da psicologia (a consciência, o inconsciente, as patologias etc), nas suas mais básicas definições, são alvo de disputas.
Quando a profissão começou a se consolidar, na passagem do século XIX para o XX, a teoria estruturalista de pensamento ainda dominava os círculos acadêmicos do hemisfério norte. Isso significa que, em grande parte, os campos de conhecimento que adquiriam escopo por volta da época tinham como forte influência o panorama linguístico de interpretação do mundo. Nessas linhas, os primeiros psicólogos buscavam identificar elementos que, dentro de um sistema, poderiam compor uma rede de símbolos e sinais da nossa consciência. Sigmund Freud, por exemplo, considerava que o ser humano era dividido em ego, superego e id, três estruturas psicológicas que dialogam, entram em confronto e causam sofrimento se a pessoa não trabalha para interpretar corretamente seus sinais. Na mesma esteira, Jung se difere do seu primeiro mentor por ampliar os elementos da psiqué: o ego não dialoga mais com suas duas complementaridades, mas passa a compor um sistema no qual precisa "conversar" com sua sombra, seu self e suas personas sob o panorama pré-estabelecido pelo do inconsciente coletivo.
A linha psicanalítica inaugurada por Freud se desdobrou de diversas formas, mas sofreu impactos em termos de validação empírica. Será que Freud explica mesmo? Para a corrente behaviorista que surgiu como resposta a partir dos anos 1940 nos EUA, a mente humana não estava necessariamente composta por elementos semelhantes ao de um sistema linguístico-simbólico. Seus sinais poderiam, entretanto, ser detectados a partir dos fatores comportamentais que os condicionam. A grande sacada do behaviorismo é poder finalmente testar causa e efeito no comportamento humano a partir de estímulos, situações e paralelos com as respostas dadas por outros animais.
A caminhada da psicologia, enquanto disciplina, ainda passa por muitos outros pontos. Rogers, por exemplo, recusou as ideias do behaviorismo, alegando que o comportamento não deveria ser a base de um tratamento psicológico: o psicólogo deveria, antes de tudo, criar laços emocionais com seu paciente e deixar a empatia entre os dois falar mais alto na hora do tratamento. Com avanços tecnológicos, a neurologia surge como um campo praticamente distinto, já que busca, pelo mapeamento das atividades cerebrais, encontrar respostas para os estímulos comportamentais do ser humano. E não podemos esquecer que o contexto de guerra-fria que envolvia o desenvolvimento da psicologia na segunda metade do século XX deixou um legado de linhas investigativas independentes na União Soviética. Hoje, muito do trabalho de Lev Vygotsky desemboca na autodenominada linha histórico-social da disciplina.
Em resumo, a provocação que surge é: quando você manda uma pessoa fazer terapia, qual exatamente você está sugerindo que ela faça? Acho que seria falta de educação não complementar seu apelo com pelo menos uma indicação que você ache mais adequada ao paciente em potencial que você detectou. E, provocando mais ainda: por que você não manda a pessoa direto pra um coach então?
A grande tragédia é que nada impede que um coach se aproxime de uma dessas linhas da psicologia e use suas ferramentas em suas sessões de treinamento e aconselhamento. Da mesma forma, nada impede que um psicólogo escape de seus terrenos bem estabelecidos e lance mão de dinâmicas e ferramentas de outras linhas concorrentes — ou mesmo do coaching em suas terapias. Qual é o limite entre as duas coisas?
Na minha opinião, o coach se difere da psicologia não em termos de conteúdo ou processo, mas de objetivo. O coaching precisa ter um objetivo claro e precisa trabalhar para orientar a pessoa para esse fim. Faz sentido o coaching ser um sucesso no meio empresarial porque as pessoas conseguem visualizar objetivos claros de carreira. Ter em mente um cargo de gerência, ou uma posição X em uma organização, ou conquistar uma formação em uma área específica, por exemplo.
Não vejo a psicologia tendo essa mesma finalidade. Um psicólogo não pode tomar decisões pelo seu paciente, ou apontar um destino claro para ele. Não cabe ao psicólogo orientar uma pessoa para uma decisão definitiva sobre sua vida, mas sim trabalhar para equipar essa pessoa, psicologicamente, para ser capaz de tomar essas decisões por conta própria. Ou seja, a psicologia age em territórios majoritariamente subjetivos. Enquanto o coach pode aplicar suas ferramentas em escala coletiva, tendo como parâmetro sua própria experiência profissional, o psicólogo fatalmente lidará com situações em que "cada caso é um caso".
É claro que outra grande diferença entre as duas coisas é o caráter acadêmico-científico muito mais consolidado da psicologia. Quero dizer, é possível encontrar autores sérios e aprofundados no coaching, mas eu não vejo profissionais dessa área conduzindo inquirições e problematizações sobre o próprio coach. Na psicologia, isso não apenas é o padrão, como também é extremamente necessário que uma profissão constantemente se reavalie perante pares, comunidade científica e sociedade. A psicologia lida com questões de ordem socioeconômicas que impactam diretamente na sua operação cotidiana (a velha questão do "como é possível ser saudável em uma sociedade doente?"). É claro que o coaching pode se enveredar por autocríticas e problematizações, mas eu não creio que uma profissão ideologicamente liberal possua o aparato metodológico pra isso: a partir do momento em que o coach se põe a problematizar o próprio campo, ele precisa fazer isso de um ponto de vista disciplinar exterior ao seu paradigma de conhecimentos.
Acredito que eu já tenha conseguido passar meu ponto: é difícil simplesmente mandar uma pessoa fazer terapia porque, no fundo, você não sabe muito bem o que quer que ela faça. Mas eu sei o que você quer que ela faça: você quer que ela se torne uma pessoa igual a você. Uma pessoa mentalmente saudável.
Uma saúde pra lá de mental
A terapia psicológica não é a solução para um problema. Ela não é um remédio, é um processo. Você pode sugerir que uma pessoa busque controlar a raiva, ou aconselhar um amigo seu a se organizar melhor, ou ainda pedir pra alguém ter mais cautela com as palavras na hora de se comunicar: se essas pessoas tentarão lidar com esses problemas sozinhas ou pelo processo da terapia psicológica, é uma escolha delas**.
Justamente pelo caráter pessoal e íntimo dessa escolha é que eu fico com os dois pés atrás de qualquer anúncio, seja de psicólogos ou de coaches (que, como já vimos, não poderiam estar anunciando isso de jeito nenhum), que estejam tentando vender o que chamamos de "saúde mental".
O que é ser mentalmente saudável? Creio que existam tantos fatores que impactam no bem-estar psicológico que eu diria que é impossível pontuar exatamente o que uma pessoa deve fazer para se sentir melhor. Lembremo-nos que a psicologia é um terreno em disputa, dentro do qual há diferentes visões sobre a mesma coisa. Estamos falando de casos de cidades inteiras com registros de pacientes depressivos devido a uma ponte cuja pintura, à base de chumbo, estava contaminando a água. Casos em que a falta de luz solar pode ser um agravante para quadros depressivos. Casos de homens confundindo suas próprias esposas com chapéus. Péssimas condições de trabalho motivando suicídios. Nem tanto pela natureza pontual de tais casos, mas sim pela sua implicância indutiva: como é possível saber exatamente o que uma pessoa precisa para ser mentalmente saudável?
Creio que esse problema cabeludo não deveria servir como desmotivação ou até mesmo empecilho para a prática psicológica, mas como um memento da nossa própria limitação humana de entendimento sistêmico. Talvez uma pessoa deveria começar a se alimentar melhor antes de procurar terapia. Talvez você acredite que seja possível superar um trauma fazendo experiências radicais, praticando esportes, realizando doações ou trabalho voluntário em missões de paz. O desdobramento desse tipo de raciocínio geralmente cai nos casos mais divertidos: o das pessoas que acham que, por exemplo, a jardinagem é uma forma de terapia, como se a terapia psicológica tivesse como benefício central fazer a pessoa se sentir melhor. Logicamente que não, já que o processo terapêutico muitas vezes envolve confronto, choque de realidade e demais situações antagônicas. No fundo, uma pessoa que equipara um hobby à terapia faz isso não porque está de fato se tratando psicologicamente por meio do hobby, mas sim porque não faz ideia do que seja, de fato, uma terapia.
Em conclusão, minha proposta seria reavaliar o conceito de saúde mental. Não é um produto que possa ser vendido, não é um objetivo cujos fatores possam ser claramente mapeados seja por quaisquer tipo de profissional: é um desejo de consumo, mas condicionado por elementos além de qualquer controle. A ideia da psicologia não deveria ser a de possibilitar saúde mental como um benefício. A psicologia tem, porém, condições de representar o processo pelo qual uma pessoa consegue identificar com mais clareza o que a faz acreditar na própria saúde mental, em primeiro lugar.
_____________________
* Acompanhar ex-colegas de ensino médio pelo instagram sempre rende momentos. Uma menina que conheci no colégio hoje está criando uma marca própria como coach e eu acho interessante acompanhar seus conteúdos (sempre com um olhar de pentelhação, né). O que começou com demonstrações de empoderamento feminino hoje rende posts gigantes com viés conspiratório e promessas terapêuticas de constelação familiar e outras formas de interferir na vida de seus clientes. Se o que fiz aqui nesse texto foi uma espécie de panorama da minha visão leiga sobre a psicologia, sobre o coach o que eu teria a dizer é: por favor, não despiroquem. O coaching ainda é frágil enquanto disciplina e pode ser apropriado facilmente por movimentos políticos dos mais variados calibres. Muita calma nessa hora.
** Eu preciso reconhecer que minha percepção aqui é bem limitada, eu não entro na questão da psiquiatria ou das internações forçadas, por exemplo. Para esses casos mais extremos, não há porque considerar que um coach poderia entrar em cena (eu acho?). No fim das contas, nenhuma parábola vai ser melhor pra descrever o cara que fica mandando todo mundo fazer terapia do que O Alienista, do Machado de Assis.