O público está revoltado
Breves reflexões e resumo do livro The Revolt of The Public and the Crisis of Authority in the New Millenium (Martin Gurri, 2014).
Se você nunca assistiu aos filmes do Senhor dos Anéis, aí vai um spoiler: eu vou falar qual é a minha cena favorita. No fim do terceiro filme, Frodo e Sam acabam conseguindo derrubar o Um Anel nas lavas de Mordor. Foi um suplício que durou boa parte da película mas, nesse ínterim, as forças do rei Théoden se posicionavam para uma última batalha contra os orcs e demais bichos horríveis de Sauron, o lorde das trevas. O exército do mal, inclusive, era gigantesco e superava numericamente as forças do bem em centenas de milhares de cabeças. Uma situação bastante chata na Terra Média.
Enquanto a batalha rolava, o Anel foi derrubado na lava e, portanto, encontrou sua destruição. Percebendo a fonte do seu poder se esvaindo, Sauron implode: a torre que ostentava seu olho flamejante desaba, as estruturas malignas se fazem em ruínas e aí vem o meu detalhe preferido: no campo de batalha ali perto, uma fenda se abre no chão, engolindo praticamente todo o exército das forças do mal. Imediatamente os orcs, trasgos, uruk-hais e membros do MBL são tragados para as profundezas da terra. Eu gosto demais desse detalhe porque ele é exatamente o oposto do que ocorre no mundo real. Em O Senhor dos Anéis, a destruição do anel é um ponto final tão objetivo na luta do bem contra o mal que isso basta para fazer sumir todos os que com ele compactuavam. Quando Hitler, escondido em um bunker, cometeu suicídio para impedir sua captura pelas tropas aliadas, isso não fez surgir um buraco no chão que engolisse imediatamente todos os nazistas. Eles continuaram lá. Alguns fugiram, outros foram capturados, outros foram ostracizados pelas medidas de desnazificação da Alemanha pós-guerra. Vários deixaram de ser nazistas. Outros tantos continuaram sendo, em segredo.
Não há porque acreditar que a destruição de um símbolo, a morte de um herói ou o apagamento de um núcleo de forças seja suficiente para suprimir também seus vetores, satélites ou demais unidades onde esse símbolo se manifesta. O fim do Olavo de Carvalho não significa o fim do olavismo, o fim de Bolsonaro não significará o fim do bolsonarismo — talvez esses e outros movimentos sejam, por si só, releituras. Diferentes roupagens de outros movimentos e outros símbolos: "forças" que, de um modo geral, convergem esporadicamente, criam visões de mundo, se apropriam de corpos, geram modificações, violência, e depois se fragmentam, se espalham.
Voltemos ao Senhor dos Anéis. Vamos pensar nos orcs e nos bichos feios não mais como seres das trevas, dispostos a destruir o mundo sob ordens de Sauron, mas sim como indivíduos que, no gozo de suas liberdades, decidiram se reunir e carregar os ideais de dominação do Um Anel. O exercício de imaginação é pensar em um filme do Senhor dos Anéis pela perspectiva de Rubens: um orc nascido em Mordor, marido fiel, pai de dois, auxiliar de ferreiro (9 horas por dia). Seduzido pelas promessas de Sauron, Rubens passa a frequentar a Irmandade dos Indignados: orcs cansados de viver no subsolo, que estão dispostos a pegar em armas e marchar rumo às terras dos homens. Nesta inversão tosca, Rubens, assim como os demais orcs sensibilizados pela causa, faz parte de um público.
Volta e meia surgem leituras que tentam lançar alguma luz sobre esses fenômenos. Em 2014 um cara chamado Martin Gurri publicou um livro chamado "A Revolta do Público", e eu resolvi marcar na minha lista de leituras pra ver se algumas ideias seriam úteis. Pois bem.
Sobre o autor
Martin Gurri é um ex-agente da CIA, o serviço de inteligência dos EUA. Só isso já é motivo suficiente pra suspeitar das intenções do livro, mas tudo bem. Quem sabe um insider não teria coisas legais pra revelar? Além disso, o livro passou a gozar de certa popularidade em meados de 2018 pois aparentemente o autor conseguiu mais ou menos prever a eleição do Trump (fato que o fez relançar o livro com um capítulo adicional voltado a comentar essa ocorrência). O terceiro e derradeiro motivo para me dedicar a ler a obra é o fato de Gurri se mostrar profundamente interessado nas dinâmicas de comunicação por meio dos artefatos digitais do século XXI. Nesse ponto, temos muito em comum.
Gurri nasceu em Cuba, nos anos 1950. Após seu tempo de serviço na CIA, passou a frequentar o think-tank libertário Mercatus Center, que é uma espécie de grupo de estudos, ativismo político e lobby ligado a uma universidade do estado da Virgínia. Esse fato é importante porque já deixa claro o posicionamento político do autor e nos ajuda a interpretar algumas de suas palavras. Vou passar brevemente por cada capítulo como um fichamento para quem não quiser encarar todas as 400 páginas.
Capítulo 1: Prelúdio a uma Era Turbulenta
Gurri inicia seu livro com um capítulo voltado à apresentação de dados sobre uma tendência devastadora: nunca, na história da humanidade, a informação fluiu tão rapidamente e em um volume tão grandioso. A informação costumava ser escassa, era propriedade dos donos dos meios de comunicação (rádios, televisões, jornais, editoras) e por isso essas entidades se tornaram fonte de autoridade. A própria forma de consumo da informação era ditada por eles. Notícias, por exemplo, eram entregadas diariamente, nos jornais: para saber o que aconteceu hoje no mundo, você teria que esperar até amanhã. Isso não faz mais sentido. Notícias não são mais consumidas dessa forma. Desde o surgimento dos primeiros canais dedicados somente a esse tipo de informação, como a CNN, notícias podem ser consumidas ininterruptamente, sobre tudo e sobre todos os lugares do mundo. Entretanto, esse consumo ainda passa pelo crivo da autoridade televisiva, pelos editores e jornalistas responsáveis.
A popularização da internet representa, para Gurri, uma força cataclísmica, uma mudança radical no consumo da informação. De repente, vozes começaram a surgir, ganhar alcance. O número de fontes de informação se multiplicou: jornais passaram a concorrer com blogs, programas de TV passaram a concorrer com vídeos do youtube, o rádio passou a ser menos ouvido. Cada acontecimento político, cada reportagem investigativa, cada anúncio feito pela mídia mainstream passou a adquirir um aspecto arbitrário, passou a ser alvo de suspeita. A informação passou a não mais estar sujeita a um monopólio.
Gurri justifica essa escalada de acontecimentos pelo fato da indústria da comunicação ter sido erigida nos mesmos moldes dos demais setores da economia. Esse modelo industrial de tratamento da informação gestou uma contracultura informacional de cunho antiautoritário, de circulação descentralizada, dispersa e, sobretudo, destrutiva. Se antes o monopólio da informação olhava para o público de cima para baixo, agora o público está revidando. Os especialistas de outrora passaram a ser contestados e sua autoridade, isto é, a capacidade de regular a informação, começou a ser questionada. Gurri dá a essa tendência o nome de "Quinta Onda" (Fifth Wave).
Capítulo 2: Hoder e Wael Ghonim
Esse capítulo é dedicado a expandir o conceito dessa "quinta onda" usando dois estudos de caso como exemplos da descentralização da informação. Gurri quer provar, a partir desse ponto, que os antigos modelos de autoridade (governos centralizados, empresas calcadas em modelos industriais de gestão etc) não sabem lidar com as novas formas de propagação da informação. O "Dilema do Ditador" surge como um resumo da situação: para manter o poder, é preciso controlar e restringir a comunicação. Ao mesmo tempo, para manter a legitimidade do seu governo, o ditador precisa permitir que a informação circule.
O caso de Hoder, um blogueiro iraniano que foi preso em 2008 por publicar postagens contra o governo, é o caso que, na opinião de Gurri, ilustra de um modo geral a maneira como governos autoritários percebem a internet: como um risco. Gurri estende essa percepção para além das instituições públicas. Empresas, sobretudo conglomerados de mídia, associam a perda de credibilidade do jornalismo como um ataque à própria democracia. Para o autor, inevitavelmente cria-se uma esfera paralela de informação. Essa esfera ajudou a inflamar movimentos sociais que marcaram os anos 2010. Por exemplo: o movimento iniciado por Wael Ghonim (supostamente) em uma página do Facebook, em 2011, foi o estopim da "primavera árabe", que derrubou o regime de Hosni Mubarak e foi o estopim para que outros países da região seguissem o exemplo. Aqui, Gurri usa o conceito de awareness threshold (Schatz, 2005) para explicar que pequenos movimentos nas redes sociais, ao compartilharem fotos, vídeos e depoimentos, expõem grandes falhas e contradições das autoridades — e reprimi-los apenas aumenta o dano. Informação é poder, e tanto a informação quanto o poder não estão mais tão centralizados.
Capítulo 3: Minha Tese
A partir desse capítulo, imaginei que Gurri começaria a ficar um pouco mais metódico. Me enganei. Suas intenções são pouco acadêmicas e mais ideológicas. A tese do autor é que estamos, nesse momento histórico, em uma encruzilhada. Marcas de um antigo regime, sustentado por partidos políticos e jornais, estão de desintegrando. A batalha, reafirma o autor, é entre as instituições autoritárias e uma nova força antiautoridade, entre o que ele chama de Centro versus a Borda. Enquanto um é formado por instituições solidificadas nas composições dos Estados modernos, a outra é composta por "seitas". A borda pode confrontar e neutralizar o centro, mas não consegue substituí-lo. O propósito do centro é modernizador, regulador, e o propósito da borda é simplesmente... niilista.
Gurri defende que, basicamente, todos os movimentos sociais recentes tem pontos em comum no fato de serem pesadamente influenciados pelo uso da internet e das redes sociais e por não terem uma pauta consolidada ou um objetivo estabelecido. São movimentos formados em torno de uma negação, e não de uma afirmação: não há um projeto ou um plano sólido, apenas uma insatisfação generalizada.
Eis um ponto de reflexão. Um risco que qualquer pessoa corre ao analisar o presente é acabar criando uma imagem menos fiel ao fenômeno analisado, e mais condizente com as próprias visões do mundo. Não tem muito problema nisso: não existe neutralidade possível nesses casos. De fato, Gurri demonstra uma forte aversão aos propósitos político-sociais dos movimentos que analisa. Não que haja um problema no público em si, mas, para o autor, a própria natureza dos movimentos está atrelada à desordem e a destruição.
Gurri joga o equilíbrio da esfera da informação institucional, mantido pelas instâncias reguladoras da mídia e do governo, contra o surgimento de um organismo chamado Homo Informaticus, isto é, o indivíduo que, graças à internet e os canais não-convencionais de informação, tem acesso ilimitado a qualquer tipo de mídia. Se antes cada pessoa tinha como canais de informação apenas as suas comunidades próximas (família, colegas de trabalho, vizinhos), agora a informação que chega a nós está muito menos filtrada — ou pior, sujeita a tantos filtros diferentes que acabamos não sabendo mais o que escolher como verdade. Há um crescimento no que Gurri chama de demonstration effect, isto é, na quantidade de exposição que os fatos estão ganhando. Histórias contrastantes entram em choque, o que é negativo sobre algo ecoa com muito mais intensidade e os nuances se perdem.
Capítulo 4: O Que o Público Não É
Esse capítulo é bastante interessante e o mais "acadêmico" do livro. Gurri finalmente se preocupa em abrir um parêntese para definir o que de fato é esse público que está se revoltando. Ele usa o conceito de público empregado por Walter Lippman (1922): o público não é um corpo de indivíduos estabelecido. Ele é um conjunto de pessoas que estão interessadas em um mesmo assunto e podem interferir nele apenas por apoiar ou se opor aos seus atores. Existem muitos públicos, cada qual embutido em culturas e circunstâncias particulares. Fazendo uso de um método chamado conhecimento subtrativo (Taleb, 2012), Gurri prossegue para diferenciar o público de outras coisas.
O público não é o povo: o povo de um país é soberano. Embora a ideia de "povo" seja uma abstração numérica, um determinado público seleto, pontualmente envolvido em uma situação, não pode ser confundido com o povo. Não há autoridade intrínseca ao público, ele pode expressar seus pontos apenas através de palavras ou ações. Enquanto o povo é um elemento fixo de uma nação, o público é apenas um alinhamento de interesses que pode ser passageiro.
O público não é a massa: a ideia de massa surge, aqui, seguindo os padrões de organização social que se originaram entre os séculos XVIII e XIX, com a ascensão da sociedade industrial. Se antes as populações se organizavam por indexadores culturais como as normas sunturárias ou sistemas de casta, com a implementação dos estados modernos, a ideia do indivíduo desatrelado de conformidades sociais passou a ser a norma. A democracia liberal passou a tomar o lugar dos regimes autoritários e assim formaram-se as massas: agrupamentos de indivíduos de acordo com classe, gênero e outras categorias de relevância. Mobilidade social passou a não apenas ser possível, como a estar atrelada ao acúmulo financeiro. Esses estratos sociais formam as massas, que muitas vezes estão sujeitas às restrições dos modos de produção que vigoram em diferentes locais e contextos. Gurri defende que os públicos encontraram-se sempre retraídos nas massas, soterrados pelas hierarquias de poder e pela autoridade. O público sempre existiu no meio da massa, mas nunca pode se expressar devidamente.
O público não é a multidão: a multidão é sempre manifesta. Ela é capaz de mobilização, de construir ou destruir, pois trata-se objetivamente do agrupamento dos corpos no espaço físico. Nas palavras de Gurri, a multidão é "uma forma de ação que submerge o desejo de muitos indivíduos sob uma mesma vontade crua". Dessa forma, a multidão pode ser vista quase que como uma "ferramenta" do público, bem como uma mesma multidão pode agrupar vários público diferentes. A capacidade de mobilizar multidões está cada vez mais fácil, graças à forma como as tecnologias de informação facilitam o encontro de públicos.
Capítulo 5: Mudança de Fase em 2011
Esse capítulo é divertido. Gurri defende que 2011 foi um ano fora do comum porque nele ocorreram muitas manifestações e movimentos antiautoritários pelo mundo. Tudo isso porque o grande combustível do público é a desconfiança — e as cada vez mais fáceis formas de traduzir essa desconfiança em ações.
O autor tenta articular essa tese com os atuais espectros de organização política (leia-se: esquerda e direita), mas sempre deixando implícita a ideia de que talvez essas categorias não sejam suficientemente abrangentes para incorporar a natureza das revoluções de 2011. O que o autor defende é que, no fundo, há uma crise de expectativas do público em relação ao que o governo pode ou deve fazer. Justiça seja feita, é cada vez mais aparente que governos ao redor do mundo estão com menos lastro para ação mediante as prerrogativas econômicas das quais dependem. Nisso, Gurri tem um ponto: alie a tendência governamental dos últimos anos com as facilidades em apontar contradições e comunicá-las através das mídias sociais e temos aí um belo caldeirão de insatisfações fervilhando a todo momento.
Tudo fica ainda mais instável quando o governo se mostra incapaz de acompanhar as mudanças e descontinuidades do público, que não é uma massa ordenada e tampouco tem pautas claramente definidas (o que define o público, de novo, é a insatisfação). A grande preocupação de Gurri é que esse atrito acabe correndo cada vez mais as instituições democráticas, e é isso que ele vê acontecendo nas manifestações de 2011. Eu acho interessante que ele não tenha contabilizado as passeatas de 2013 que aconteceram pelo Brasil, mas eu achei que elas se encaixam bem nessa análise do autor. Os exemplos trazidos por Gurri são os protestos israelenses de 2011, o movimento Occupy Wall Street e outros protestos que seguiram os mesmos padrões: grandes públicos instigados pelas redes sociais e com pesadas cobranças aos governos.
Eu não sei se concordo completamente com o autor nesse ponto. Gurri dramatiza as intenções dos protestos e ataca seus organizadores. Para ele, há uma clara falha em entender o papel do governo. Essas pessoas que estão protestando são sobretudo indivíduos de classe média, bem-educados, com acesso a bens essenciais e em pleno exercício de sua cidadania. Do que elas estão reclamando, afinal? Por que a sua insatisfação? Gurri implica: segundo ele, os protestos de 2011 são conduzidos por pessoas que estão se manifestando contra o sistema que literalmente foi o que proporcionou que elas se construíssem, individualmente, da forma como elas são. Essa tautologia absurda é o que me deixa um pouco chateado com o autor. Se nos primeiros 4 capítulos ele construiu uma tese interessante, agora ele parece estar encontrando meios para deslegitimar movimentos sociais.
Segundo Gurri, o público não tem capacidade de substituir as estruturas sociais estabelecidas pelo governo: seu único poder é a ameaça de uma turbulência eterna. Como se a crise de insatisfação tivesse um fim em si mesma. Nada além de semear desconfiança e apenas negar o que já existe, sem propor nada de novo que seja melhor. Essa interpretação basicamente conservadora de qualquer mobilização social cai na armadilha de acreditar que o coletivo não constrói nada, apenas destrói, e que o público revoltado só está revoltado porque não entendeu como o mundo funciona.
Capítulo 6: Uma Crise de Autoridade
Nesse longo capítulo, Gurri explora o problema desencadeado pelas manifestações sociais do novo milênio e finalmente se aprofunda no objetivo do livro: "descrever como uma crise institucional de autoridade aparenta ser, e ilustrar algumas instâncias em vez de demonstrar literalmente a proposta sem deixar margem para interpretações". Se até então Gurri buscou pontuar casos que corroborassem para uma tese mais ampla sobre a "quinta onda", agora ele busca apontar as falhas dos governos modernos e como as manifestações do público estão trabalhando para corroer suas bases.
A função da autoridade, defende Gurri, é prover ordem e certeza em um mundo caótico. Quanto melhor a ordem é estabelecida pela autoridade, mais ela se sustenta. Por isso, símbolos são extensivamente utilizados (a toga do juiz, a faixa do presidente etc) porque a autoridade, em si, é um conceito intangível. As formas de autoridade que chegam a nós hoje são um legado da industrialização, inclusive nas intenções do governo. Puxando a referência do excelente Seeing Like a State, do James C. Scott (1999), Gurri comenta que os Estados modernos se estabeleceram por meio de paradigmas de grandes transformações sociais (leia-se, o bom e velho desenvolvimentismo). Não apenas os países soviéticos, mas todo e qualquer governo moderno conduziu grandes adaptações do cenário da natureza para abrigar cidades, rodovias, plantações, e isso impactou profundamente a composição da população, as estruturas jurídicas e toda a malha de composição da vida humana. Trocando em miúdos, o período que transcorreu do século XVIII ao século XX foi impactado por revoluções na forma de viver. Os campos do saber humano que se firmaram nesse período, como a ciência moderna, também seguem o mesmo paradigma.
Um ponto interessante que Gurri ressalta é que nenhuma dessas transformações foi perfeita. Muito pelo contrário, elas acarretaram enormes problemas, acumularam falhas e trouxeram consequências jamais previstas. Vários desdobramentos são tratados por Gurri a partir dessa problematização, mas o argumento que emerge é que a esfera da informação sempre esteve pautada em alinhamento à autoridade. Ou seja, por mais que esses projetos grandiosos fossem, no mínimo, controversos em sua execução ou resultados, o conhecimento do público sobre eles permaneceria "purificado".
Agora, falhas institucionais, projetos fracassados ou contradições estariam expostas com muito mais ênfase. Um exemplo que o capítulo traz é o estouro da bolha imobiliária de 2008. A grande contradição é que a prática de venda de empréstimos de alto risco pelos bancos foi a grande responsável pelo abalo financeiro — mas o Estado, com sua autoridade e capacidade de restaurar o equilíbrio econômico, optou por injetar liquidez nos bancos, resgatar negócios e assegurar que o sistema continuasse operante. Como, pergunta Gurri, é possível manter a confiança em uma autoridade que passa um pano desse tamanho para um escândalo financeiro?
A sobrevivência do capitalismo é um dilema que Gurri não consegue resolver, tamanhas as revoltas do público que vem ocorrendo. Mesmo assim, ele se mostra cético em relação a qualquer possibilidade de mudança profunda. O argumento do autor (e que eu acho engraçado) é que as empresas e iniciativas da esfera privada podem falhar. A elas, esse direito é reservado. Ao Estado e as instituições públicas, a falha se torna muito mais grave, pesada. Empresas conseguem nascer e morrer muito rapidamente, mas um país inteiro não consegue ter essa mesma dinâmica. Vocês estão vendo onde ele quer chegar com esse raciocínio, né.
Gurri encerra o capítulo delineando dois sintomas do declínio da autoridade: primeiramente, uma incerteza generalizada em torno de questões importantes. A enxurrada de informação não-filtrada não nos torna mais bem-informados, apenas mais desconfiados de tudo, inclusive das instituições consolidadas (é só observar como as notícias sobre a COVID-19 foram recebidas); o segundo sintoma é a impermanência. Velhas certezas dão lugar a novas correntes de pensamento que não tem como objetivo a consolidação, mas apenas o preenchimento de espaços vazios de tempos em tempos. Não entendi muito bem o que Gurri quis dizer com esse segundo sintoma mas ele faz questão de alertar para a crescente onda de misticismo e apelo religioso que conquista o público (um exemplo interessante é o aumento vertiginoso da população cristã na china, o número de adeptos do ISIS ou a quantidade de neopentecostais nas américas).
Capítulo 7: O Fracasso do Governo
Em sua jornada para continuar provando que o governo democrático, enquanto instituição, está com o pé na cova, Gurri monta um capítulo baseado na comparação entre dois presidentes dos EUA: John F. Kennedy e Barack Obama. Kennedy protagonizou uma tentativa de invasão a Cuba durante a guerra fria, episódio que ficou conhecido como "Invasão da Baía dos Porcos" (1961), que resultou em fracasso e um saldo de mais de 300 mortes e 1200 soldados capturados. Toda a operação foi resultado de uma preparação sigilosa envolvendo grupos paramilitares. Mas Kennedy assumiu a culpa publicamente e, embora o desastre tenha sido coberto exaustivamente pela mídia, o presidente é lembrado como tendo feito uma boa (apesar de breve) gestão. Obama assumiu o cargo em 2008, após uma campanha exemplar na qual se colocou como um representante de uma nova geração da política, envolvido com questões sociais e disposto a combater o establishment. Lembre-se do estouro da bolha imobiliária em 2008: como resposta a isso, a administração Obama tentou emplacar um pacote de recuperação e estímulos financeiros em 2009 que, embora vaga e despretensiosa, gerou uma onda de revoltas que acabou minando a confiança do governo.
Gurri defende que os 50 anos que separam os dois eventos permitiram que novas percepções de mundo deixassem o governo muito mais a interpretações de suas ações do que de resultados tangíveis. Não é que o governo "não faz nada": não importa o que o governo faça, suas ações estarão muito mais suscetíveis às revoltas do público. nas palavras do autor, o "intervencionismo dos governos substituiu as milhares de táticas por uma única estratégia ousada". A transparência é o novo posicionamento exigido para o governo, não mais a "verdade". A possibilidade que Gurri quer que encaremos é a de que a política da democracia está sendo disputada ao redor que questões que os governos democráticos não mais tem poder para resolver. E aí até o fim do capítulo o autor lança os argumentos, novamente de cunho conservador, de que o mundo está muito melhor agora, graças ao capitalismo, do que estava antes. De novo, o público está revoltado, mas não sabe o que quer.
Capítulo 8: Niilismo e Democracia
Neste capítulo, Gurri desenha o personagem que ele chamada de "niilista": a pessoa que chega à conclusão de que a destruição do sistema é mais vantajosa do que os esforços que o mantém funcionando. Não vou me deter muito aqui, acredito que nesse capítulo o autor faz uso de uma miopia proposital para, novamente, invalidar as manifestações do mundo contemporâneo. Ele chega ao extremo de equiparar os líderes das demonstrações de 2011 aos mass-shooters que volta e meia aparecem em atos de terrorismo, isso porque essas pessoas, supostamente, estão agindo sob uma mesma mentalidade niilista de negação do sistema de autoridade.
No fim das contas, o resultado da revolta do público, para Gurri, é majoritariamente negativo: "Quero deixar claro o que estou sugerindo: uma vasta colisão estrutural (a do público contra a autoridade) deixou governos democráticos sobrecarregados com seu próprio fracasso, políticas democráticas removidas da realidade, e programas democráticos esvaziados de energia criativa". Eu entendo que o argumento de Gurri é pró-democracia: não tentando resgatar os antigos governos revolucionários modernistas, mas tentando alertar sobre as fissuras que os atuais governos enfrentam. Mas a miopia história é um problema. Afirmar que as revoltas sociais são intencionalmente maléficas ou "niilistas", como ele propõe, é subestimar o peso que revoluções parecidas tiveram no passado. Enfim, esse capítulo é bastante problemático.
Capítulo 9: Escolhas e Sistemas
Esse capítulo é bastante especulativo e tenta fazer algumas previsões sobre o futuro que nos aguarda caso as tendências antiautoritárias se acentuem. Gurri menciona algumas questões próprias dos governos que se consolidaram na mentalidade modernista: o fato deles, por exemplo, relevarem as questões das esferas individuais em prol dos grandes projetos revolucionários de construção de mundo. De novo, Gurri comete o pecado histórico de isolar acontecimentos como únicos em vez de buscar paralelos recorrentes na história. Para o autor, a Quinta Onda não deixa mais espaço para experimentos sociais de grande porte do governo. Isso significa que cada vez mais o futuro da democracia depende do quanto ela está disposta a valorizar o indivíduo em vez de encará-lo como uma parte da "massa". Já, por parte do público, o que deve ser feito é um realinhamento das expectativas em relação ao governo. Algo como: encarar que nem tudo depende do Estado... e baixar a bola.
Eu acho que Gurri se coloca em uma posição delicada ao defender essas coisas porque está sendo desconsiderada uma parcela da sociedade que se beneficia diretamente do governo e das políticas adotadas nas últimas décadas. É claro que estou falando dos megacapitalistas e dos "lobos de Wall Street", mas dificilmente o autor leva em conta esses públicos em suas equações. Ele insiste em adotar um binarismo que não necessariamente condiz com a realidade, mas se encaixa perfeitamente na sua tese.
No fim das contas, Gurri vê dois caminhos possíveis: o governo pode continuar apelando para estratégias autoritárias de controle de público e de manutenção da informação, ou pode optar por um realinhamento histórico deixando que a informação flua de modo legível para as bases da pirâmide social. Ele até tenta explicar como isso funciona mas eu não me convenci nem um pouco de que ele pensou de fato em uma solução para o problema.
Capítulo 10: Encerramento para os Céticos
No breve capítulo de conclusão, Gurri tenta analisar sua própria tese e considerar suas falhas e limitações. Algo que já acontece em muitos países é o surgimento de instituições e ONGs que se propõem a tapar os buracos deixados pelo governo, propondo intervenções sociais e trabalhos voluntários em regiões nas quais o Estado é (ou se faz de) cego. O contraste são os governos que ainda se mantém autoritários, como na China, onde a autoridade ainda funciona com eficácia graças à extrema centralização de poder do partido comunista chinês. O fato é que o público, por si só, não se sustenta. Ele não cria instituições e não é capaz de propor alternativas à autoridade do governo. Mas não há um botão "liga-desliga" no público. Ele não pode ser silenciado. Tentativas de rechaço voltarão com força na era da transparência.
Capítulo Bônus: Trump, Brexit e o Adeus a Isso Tudo
Esse último capítulo é um adendo a uma edição do livro lançada em 2018. Na onda da popularidade que sua obra obteve, Gurri acrescenta um capítulo extra no qual comenta sobre a eleição do Trump e o movimento separatista do Reino Unido para fora da União Europeia — ambos fenômenos que o autor vê como consolidações da sua tese sobre a revolta do público.
Em relação ao Trump, alguns pontos são interessantes: ele é uma personificação do público criado pelas redes sociais. Sua linguagem profana e antiautoritária é essencialmente aquilo que define o público que se revolta contra o governo. Trump foi eleito com essa prerrogativa e no fim se comportou como um presidente-padrão do partido Republicano, fazendo com que Gurri se gabe do fato de ter previsto mais um desfecho para uma revolta do público: o nada.
Tudo sobre o fenômeno Trump leva a reforçar o pessimismo e a desconfiança em relação à democracia que caracterizam, segundo o autor, o tempo em que vivemos. O corolário da tese de Gurri é ainda mais pessimista se considerarmos que, de acordo com a tese dele, a democracia sempre foi extremamente frágil e problemática. A diferença é que antes havia uma rede de informação que se beneficiava do sistema e, portanto, trabalha em conjunto com ele para mantê-lo a salvo da transparência que poderia destruí-lo. Tirando essas pontuações interessantes, o restante desse capítulo é bem "empolguei" por parte do autor, que faz várias alusões e falsas equivalências.
Considerações finais de minha parte
Eu preciso admitir que Gurri tem um ponto. O modelo democrático dos Estados modernos é um grande experimento que se renova e se reinventa na mesma medida em que o capitalismo desenvolve recursos para se autossustentar. Não é um absurdo dizer que esse sistema tem fragilidades e que estamos vivendo momentos de tensão em democracias do mundo inteiro. Protestos no Chile em 2018, o retorno das viúvas da ditadura militar ao poder no Brasil, a invasão do capitólio nos EUA em 2021 são alguns exemplos que eu vejo como plausíveis sob a óptica da revolta do público de Martin Gurri.
Entretanto, não deixa de ser um livro deveras pretensioso em seu escopo. Gurri começa bem, inicia com 5 capítulos que passam uma narrativa bastante persuasiva e com pontos bem interessantes de análise. Porém, fica evidente que o que faltou, no fim das contas, foi um editor que conseguisse convencer o autor a separar melhor sua agenda política da análise que ele estava tentando fazer. Se Gurri é um grande crítico da esfera da informação não-mediada que serve de combustível para o público revoltado, ele deveria tentar ter mais cuidado para acabar não fazendo parte dessa esfera também.
Não que tenha algo de errado em expressar sua agenda política em um livro. Isso é normal. O problema é não admitir que essa agenda política influencia sua visão sobre os fatos. Gurri insiste em equivalências que não fazem sentido, aponta semelhanças que não existem e, no fim, nivela a revolta do público como um fenômeno bastante "preto-no-branco", achatando todas as intenções políticas do contemporâneo em um mesmo movimento "niilista". Esse tipo de tentativa repetitiva de deslegitimação de movimentos sociais poderia passar por uma crítica ainda mais pesada se considerássemos as correntes de pensamento decoloniais e demais escolas filosóficas contemporâneas, mas me parece que Gurri, propositalmente, se mantém afastado dessas vertentes e não faz muita questão de incluí-las em sua tese (o que eu acho que poderia enriquecê-la bastante, já que a pauta crítica ao modernismo desenvolvimentista seria um território em comum). Uma última e breve crítica que eu faria é apontar que, embora o interesse do autor seja centrado na comunicação pela internet e nas plataformas apropriadas pelo público, ele dedica pouca ou quase nenhuma energia para investigar como essas plataformas se solidificaram e quem as mantém. Acho que isso traria um certo choque e faria Gurri se questionar se de fato o público está no controle da informação que consome e que faz circular por esses meios (ou se não estamos reinventando a massa, na própria definição empregada por ele).
Não há uma revolta do público: há uma miríade de revoltas acontecendo e a pretensão de acompanhá-las em tempo real me parece uma empreitada sisífica, no mínimo. É preciso deixar a história fazer sua parte, entender o movimento de revolta pelo seu caráter único muito mais do que tentar encaixá-lo em um template totalizante. O problema é que isso freia um pouco a ansiedade de entendermos o que diabo está acontecendo com o mundo agora, em tempo real. Aqui eu acabo sendo empático com o autor: também acredito que algo, e algo um tanto preocupante, está acontecendo com o mundo.