Recadinho à coruja do Duolingo: vou te estalar o coco
Tentar aprender alguma coisa nova significa, eventualmente, questionar se o que não está funcionando é o método de ensino, ou se é você que não leva jeito pra coisa.
Você já desistiu de aprender alguma coisa? Já né. Muito provavelmente a minha desistência mais rápida foi em relação aos patins. Eu ando de bicicleta desde criança, consigo me equilibrar em cima de um skate, mas o conceito da patinação (seja com rodinhas ou em uma superfície gelada, calçando perigosas lâminas) foi demais para mim. Eu sabia, após meia hora de tentativas, que aprender a me locomover usando esses artefatos demandaria um esforço maior do que eu estava disposto a investir.
Com a língua alemã, a coisa vem sendo um pouco diferente. Depois de alguns semestres no CELIN (o Centro de Línguas e Interculturalidade da UFPR), mais alguns semestres com aulas particulares e ainda mais um nebuloso e indefinido período de tempo com práticas online e leituras esporádicas, minha insistência começa a jogar contra mim algumas questões de ordem pedagógica. Se você nunca completou 100% das lições de algum curso do Duolingo, o famoso aplicativo de aprendizado de idiomas, eu vou te mostrar o que acontece: você recebe a imagem de um "certificado".
Esse certificado traz um texto vago, se isentando de qualquer consolidação pessoal. Ele não diz, por exemplo, que agora eu sei falar alemão no nível B1 ou que eu estou pronto para entrar em um bar em Düsseldorf e pedir um Schnitzel acompanhado de um Orangesaft. É apenas um pseudocertificado que atesta que eu tive paciência pra fazer todos os exercícios que a plataforma disponibiliza. Tudo bem, o Duolingo tomou o cuidado de nunca deixar explícito que seu resultado seria a fluência ou a compreensão em qualquer nível padronizado. Entretanto, um estranho fenômeno aconteceu nos últimos meses. Eu resolvi entrar no aplicativo todos os dias e fazer uma meta diária de uns 5 ou 6 exercícios. Segundo o Duolingo, minha assiduidade seria recompensada mantendo um streak, isto é, uma corrente de ganho de experiência que garantiria recompensas maiores e a manutenção das tarefas já feitas – elas não sofreriam, portanto, um decay que demanda reforços posteriores.
À medida que eu dedicava meus minutos diários ao Duolingo, eu percebi que, independente dos meus avanços com o idioma, a lógica interna do sistema se tornava muito mais evidente. Eu conseguia responder às perguntas com mais facilidade por causa das repetições de temas. Completava os espaços em branco com as palavras certas cada vez mais rápido, conseguia prever a estrutura das frases sem ler enunciados e até mesmo passei a detectar que palavras eu podia omitir nos exercícios de pronúncia. O Duolingo não estava treinando tanto meu alemão quanto a minha capacidade de ser um ótimo usuário do Duolingo.
Acho que todo mundo já ouviu falar de histórias de crianças que eram prodígios na escola, mas acabaram se tornando adultos frustrados. Em contraste, há os alunos que não davam bola para o conteúdo da aula, abandonavam os estudos ou até mesmo nem passaram por instituições de ensino e acabam excedendo expectativas na vida profissional. Talvez aqui seja possível identificar um paralelo da escola com o Duolingo: qualquer instituição de ensino é capaz de criar alunos que compreendam muito bem sua lógica de ensino e seus sistemas de avaliação, fato que se reflete pelas métricas adotadas (sistemas de nota, frequência, comportamento). Entretanto, há o perigo de criar uma situação na qual as métricas retroalimentam a lógica, criando um círculo vicioso no qual o sistema se torna cada vez mais robusto, não necessariamente gerando impacto positivo na vida do aluno em relação aos seus objetivos pessoais. O aluno vai bem, tira nota dez e entende o conteúdo não pelo valor intrínseco desse conteúdo, mas porque o sistema desenvolveu uma quantificação e só enxerga o avanço desse aluno pelo tanto que o conteúdo é pareado com as métricas propostas. O aluno vai bem, não porque está aprendendo algo, mas porque entendeu o que precisa fazer pra ir bem. Vamos dar um nome bonito: o que aconteceu comigo, no Duolingo, foi que eu caí numa armadilha tautológica do feedback de aprendizado recorrente. Esse nome não ficou bonito. Vamos tentar de novo: armadilha de retrofortalecimento do sistema. Ok, melhor deixar. Mas é uma armadilha.
Talvez a coisa fique mais fácil de visualizar se nos afastarmos da área da educação. O Duolingo é uma plataforma de ensino, então foquemos mais na "plataforma" do que no "ensino". Esse sistema monetiza seu funcionamento e obtém lucro por meio de duas estratégias principais: exibindo anúncios entre as lições e cobrando assinaturas de usuários premium. Usuários premium ganham vantagens, não precisam mais ver anúncios e tem um ou outro mimo dentro do sistema gamificado da plataforma. Os demais alunos que, como eu, não pagam o premium, precisam ver um anúncio ou outro, não podem fazer testes seguidos para avançar níveis etc. A plataforma consegue atrair anunciantes porque promete que seus usuários passam um bom tempo no site, olhando para a tela e sendo expostos à publicidade. Ela consegue prometer isso porque coleta dados como tempo de permanência de cada aluno, visitas diárias, localização dos acessos etc.
O Duolingo, assim como qualquer plataforma digital, fortalece seu sistema se consegue manter mais pessoas acessando-o. É natural que, quanto mais tempo eu fique por lá, mais intuitivo esse sistema pareça para mim. Agora o paralelo com a escola talvez não faça tanto sentido, mas se pensarmos em um usuário ávido do Instagram, as correlações começam a surgir novamente. Uma pessoa que tem muitos seguidores em uma rede social não precisa ser necessariamente famosa ou interessante fora dela: ela pode apenas ter compreendido como usar as ferramentas desse sistema no seu melhor potencial. As métricas (número de seguidores, quantidade de likes, fluxo de mensagens no inbox) não estão comunicando um aprendizado ou um avanço de qualquer natureza, mas estão reforçando o sucesso na compreensão da lógica interna do sistema. Some isso aos algoritmos de seleção de conteúdo e temos plataformas que não apenas me mostram só o que eu quero ver, como também me trazem a sensação de recompensa ou sucesso por estar vendo isso.
Perceba que eu usei palavras como experiência e pontos para me referir ao meu progresso no Duolingo. A estratégia de gamificação surge, em plataformas e sistemas diversos, como uma maneira de tangibilizar avanços, engajar participantes e criar contextos plausíveis para dar recompensas a eles. Será que eu sou mais jogador do que aluno no Duolingo então? A série de características que Jesse Schell (The Art of Game Design, 2008) enumera para definir o que é um jogo começa com a que eu considero mais emblemática: antes de ser um sistema de regras, com objetivos, conflitos e interatividade, um jogo é um campo ou uma área que precisa ser adentrada intencionalmente pelo jogador. Talvez seja essa a principal diferença entre um jogo e um sistema gamificado: você pode estar ganhando pontos e acumulando experiência sem ter concordado com isso.
Quando a lógica da educação encontra a lógica do capitalismo de plataforma, um embate acontece e as armadilhas surgem. Eu me questiono se o objetivo do Duolingo é realmente me ensinar alemão ou apenas cativar meu uso para que eu continue retornando ao aplicativo. Essa crítica precisa ser refletida à mim também: eu sei que não vou aprender alemão só fazendo as lições da corujinha verde. Eu preciso ver filmes, jogar video-games em alemão, ouvir música ou o que quer que diabos eu tenha feito pra aprender inglês (e aqui estou sendo sendo superficial a ponto de acreditar que ambos os idiomas podem ser aprendidos pelas mesmas estratégias).
Fatalmente, cada aluno terá suas próprias necessidades na hora de aprender alguma coisa. Um equilíbrio entre os mecanismos que um sistema desenvolve pra se manter e os aspectos pedagógicos do conteúdo que ele precisa ensinar precisa ser criado. A educação é um labirinto de paradoxos: é preciso ensinar a aprender, aprender a ensinar, ensinar a ensinar e aprender a aprender.