Tributo ao brio do barbeiro sensível
Breve relato sobre contatos imediatos de terceiro grau na barbearia
Há alguns meses venho conduzindo, informalmente, um pseudo-estudo etnográfico. Ele consiste no seguinte método: quando decido que está na hora de ir à barbearia, eu sorteio um local novo, ao qual nunca fui antes, para agendar um horário com um barbeiro que até então jamais me atendera. Chegando no estabelecimento, eu inicio minha sondagem antropológica: passados os cumprimentos e cordialidades protocolares, nada mais digo. Apenas me dirijo até a cadeira, me posiciono no confortável assento e então disparo a seguinte frase: Dá um jeito nisso aí.
O desafio é recebido de diferentes formas pelos barbeiros. Trata-se de um momento de singularidade, no qual a estranha solicitação demanda respostas profissionais que podem variar muito. É um encontro da minha cabeça calva com anos de experiência em corte e barbearia; com toda a bagagem cultural e treinamento do barbeiro e seu aparato de tesouras e máquinas; com o ethos do ambiente da barbearia, em suas exigências de manutenção da masculinidade e responsabilidades civilizatórias quanto às aparências de seus fregueses.
Alguns barbeiros imediatamente replicam pedindo mais informações. Querem saber se costumo cortar de algum jeito específico, se tenho restrições. Nesses casos, o experimento toma um rumo dialógico, pelo qual tento argumentar que gostaria de sugestões. “O que você acha que fica melhor aqui no meu caso, chefe?”. O barbeiro então inicia um movimento de translação em torno da cadeira, buscando apontar detalhes imediatamente perceptíveis. Encurtar aqui, fazer um degradê ali, manter ou não o comprimento da barba.
Há casos onde meu desafio é rebatido com silêncio. O barbeiro decide não falar nada também. Ele analisa o objeto (minha cabeça) com cuidado, escaneando o ambiente de intervenção por diferentes ângulos. Nesses casos, as expressões faciais dizem muito. A barbearia é um ótimo lugar para registrar expressões devido à grande quantidade de espelhos revestindo as paredes. Alguns barbeiros permanecem incólumes, o olhar sereno e analítico não muda. Outros movimentam os músculos da testa e das têmporas imediatamente, respondendo meu desafio com um olhar sério, reprobatório.
Passada fase da mudez voluntária, o barbeiro retoma seu protocolo de atendimento recorrendo a sugestões: vamos passar a máquina então? Para delimitar melhor a situação de projeto, ele também opta por medidas cautelares: vai incluir a barba ou é só o cabelo? Vamos fazer um visagismo (técnica de harmonização do formato do rosto com os tipos de barba possíveis)?
Certa vez, um barbeiro ouviu o dá um jeito nisso aí, se afastou da cadeira e, antes de instalar a capa protetora no seu mais novo cliente, perguntou se eu não gostaria que ele ligasse para o padre. Responder com chacota e piadas é uma estratégia muito comum, mas que provavelmente parte do pressuposto de que o meu pedido, em si, também trata-se de uma piada. Afinal, que cliente não tem preferências ou gostos pessoais quanto à própria aparência? A piada torna-se, portanto, um dispositivo análogo ao contra-briefing: uma insistência, por parte do profissional, para tentar descobrir o que o cliente de fato precisa.
Em casos mais raros, o barbeiro apenas responde com um “OK”. O aceite incondicional, que supostamente departe de uma confiança inabalável, também resulta da inevitável constatação de que não há muito a ser feito por ali. Pela minha cabeça, quero dizer. A escassez capilar aliada à desgrenhada barba deixa o campo de possibilidades bastante reduzido. O barbeiro inevitavelmente acaba constatando que está diante de um cliente fácil. De fato, o desprendimento com o qual o dá um jeito nisso aí é proferido acaba por condicionar o barbeiro a também se desprender das suas obrigações formalizantes.
Esse aspecto denuncia que o objetivo desse estudo antropológico jamais poderia ser algo como “descobrir a verdadeira natureza do barbeiro” ou ainda algo mais pretensioso, como “observar as estratégias profissionais dos barbeiros de uma maneira neutra e sem julgamentos”. Como Roy Wagner nos explica na Invenção da Cultura, não há possibilidade de ter acesso ao mundo dos barbeiros de forma direta, não mediada pela minha própria cultura. O que acontece sempre é um encontro do universo da barbearia ao meu. O que se observa, portanto, é um evento inédito, um fenômeno criado pelo choque entre a habilidade do profissional da barba e do cabelo com o meu completo desprendimento. Estou, ao mesmo tempo em que corto meu cabelo e faço a barba, criando a imagem do barbeiro. Ele, ao mesmo tempo, vai criando o seu novo cliente.
Quem garante que estou observando uma imagem mais fiel à do barbeiro do que o cliente que entra no salão cumprimentando todo mundo, conhecendo os funcionários pelo apelido, caçoando dos times que sofreram derrotas na última rodada do brasileirão e mandando um o de sempre ao sentar na cadeira? Nesse outro fenômeno, criado pelas circunstâncias de proximidade e afeição, reside um novo barbeiro e também um novo cliente, ambos reinventando-se à sua maneira.
Ainda mantenho esperanças de me deparar, em alguma ocasião, com o barbeiro que não aceitará o desafio. Dá um jeito nisso aí. Não. Não dou. Não é meu trabalho dar um jeito nas coisas. Não dou jeito em nada, cortar cabelo não é dar jeito. Onde já se viu. Um homem tem o poder de segurar uma navalha contra o seu pescoço, e tudo que você tem a dizer é dá um jeito nisso aí? Você vai morrer.
A CIB (Confederação Internacional dos Barbeiros) fica ciente do caso. Estuda hipóteses. Há um subgrupo de barbeiros que acredita que é possível dar um jeito nisso aí. Outros, céticos e desconfiados, acrescentam uma dimensão filosófica ao debate, ao propor que para “dar um jeito nisso aí”, muitas vezes é necessário ir além da barba e do cabelo, sugerindo alterações profundas na fisiognomia e nos traços desarmonizados do rosto do indivíduo.
É lançado um voto de desconfiança ao cliente desapegado que ousa proferir esse tipo de desafio insólito. “Você manda seu médico ‘dar um jeito nisso aí’ quando chega no consultório? Você diz ‘dá um jeito nisso aí’ apontando para a própria barriga quando conversa com o garçom no restaurante?”. A prática é condenada. Uma pesquisa como essa jamais seria aprovada em um conselho de ética. Placas dizendo “É proibido pedir para dar um jeito nisso aí” agora ficam penduradas nas paredes de barbearias no Brasil inteiro — junto aos espelhos, aos certificados dos cursos de cabeleireiros e às imagens de referência com belos penteados.
Designers gráficos já se adiantam e patenteiam um novo modelo de organização de pedidos para barbeiros. Com um gabarito representando um ser humano desprovido de quaisquer traços caracterizantes, fica fácil realizar as mais diversas solicitações usando uma caneta esferográfica ou um lápis de cor:
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Com cada vez mais restrições para continuar executando meu experimento, tento detectar alguma barbearia mais afastada. Trafegando pelos bairros da região metropolitana, encontro, enfim, um recinto promissor. Aberta com apenas um cliente finalizando seu corte, aguardo minha vez. O barbeiro, um sujeito simpático, me acalma prevendo que serei atendido em uns dez minutos. Quando finalmente me aprochego na sua cadeira reclinável, ele pergunta: e aí, o que vai ser? E eu respondo: dá um jeito nisso aí.
O rapaz me encara pelo reflexo do espelho. Desvia seu olhar para minha cabeça, que passa por uma ligeira análise. Sorrindo, ele responde: corta na frente, e atrás só pica?
Expediente
Detesto ser a pessoa que avisa que já estamos chegando na metade do ano, mas já estamos chegando na metade do ano! Não é culpa de ninguém, infelizmente isso é consequência do movimento de translação do nosso planeta. Então, aqui vai uma lista rápida de coisas que estou gostando:
X-Men ‘97: muito bacana a nova série animada dos estúdios Marvel. A apelação nostálgica é forte, mas a história em si é muito envolvente e os X-Men são personagens muito queridos, carismáticos. Eles são uns fofos;
Fallout (Série da Amazon): essa foi uma agradável surpresa. Eu não joguei nenhum joguinho dos Fallouts, mas gostei muito de conhecer esse mundo insólito e cheio de ameaças radioativas. Acho que é uma série que usa o recurso do flashback pré-apocalipse com mais sagacidade que The Last of Us.
Ashley Madison — Sex, Lies & Scandal: essa breve série documental que a Netflix soltou esses dias é um conjunto de pérolas. Tudo que acontece é muito engraçado e todas as pessoas envolvidas parecem ser muito tapadas.
Dungeon Meshi: como é bom ir acompanhando um anime com uma galerinha sinistra. Dungeon Meshi é engraçado, é comovente, é muito sagaz. Esse worldbuilding que ele faz é convincente e bem-elaborado, como se fosse um video-game projetado por uma pessoa maluca. Me lembra um pouco o Dorohedoro (que também é outra obra prima).
Filmes de roubo (heist movies): fiz praticamente uma maratona dos filmes do Soderbergh nesse semestre. 11 Homens E Um Segredo é um filme de roubo com algumas piadas pelo meio. 12 Homens E Outro Segredo é um filme de comédia com um roubo acontecendo em algum momento. E 13 Homens E Um Novo Segredo é um filminho legal também. São filmes com ritmos acelerados, nos quais o objetivo é fazer o espectador se perder um pouco nos fios da trama: ninguém, incluindo você, pode ser mais esperto que a super equipe de amigos ladrões que une forças para esse trabalho. A mesma lógica está em Logan Lucky, outro filme do mesmo diretor sobre um roubo feito durante um grand prix da Nascar. E, pra fechar, também fui atrás de um filme chamado Rififi, de 1955, que conta a história de um roubo muito elaborado em uma joalheria. O silêncio é um elemento crucial para esse tipo de operação, e Rififi é um filme que sabe lidar com isso muito bem. Agora só falta EU executar algum roubo muito elaborado e silencioso.
O joguinho Noita: você incorpora uma bruxa encapuzada em Noita, um roguelike cujo objetivo é te fazer cavar cada vez mais fundo pelo meio dos níveis de uma caverna, encontrando varinhas mágicas estranhas cujos poderes podem ser combinados de diferentes formas. O grande problema é que cada pixel em Noita é simulado, ou seja, ele interage com as demais partículas que entram em contato, então todo o cenário é uma espécie de ser vivo esperando pra te matar. É um joguinho divertido, mas muito difícil.
Na edição passada dessa newsletter, nós ouvimos um pouco de Ween. Agora, a banda da vez é La Femme.
Seria maravilhoso se um barbeiro só colocasse uma peruca na sua cabeça, sem dizer mais nada
parabéns por arriscar seu pescoço em nome da ciência! poucos teriam essa coragem (os mais vaidosos, então, nem pensar!).