Quando lançamos o projeto de financiamento coletivo para o livro da Jojoca, em meados de 2021, passamos por algumas rodadas de discussões sobre as categorias de recompensa. Quando você resolve criar um projeto desse tipo, precisa considerar que recompensas mais acessíveis podem gerar mais abertura para o público.
A Jojoca era (ainda é, dizem) uma página do falecido Facebook onde postávamos bobagem. OK, isso não ajuda muito a afunilar do se trata tal página, em termos de características, então é legal dizer também que nosso diferencial é que postávamos apenas bobagens em texto, e não em imagem. Mais especificamente, em pequenas frases — jojocas, como diz o título do empreendimento.
Logo, surgiu a ideia de separar essas jojocas entre uma lista de mais de 350 para compor o livro principal, e outra lista, menor, contendo uma seleção especial de 52 jojoquinhas ilustradas por este que vos escreve.
Essa lista menor virou um livrinho-plaquete encadernado artesanalmente por Maria Chiang, em sua oficina na cidade de Campo Grande. Apenas 30 cópias desse pequeno livrinho existem. Hoje, passado um bom tempo após o lançamento, acredito que não tem problema em ir espalhando, pouco a pouco, essas jojoquinhas especiais por aí.
Ainda posto, esporadicamente, novas jojocas na página. Esses dias, mandei lá o “oposto de uma empresa de mudanças: ela oferece um serviço de ‘ficanças’, no qual um caminhoneiro vai até a casa da pessoa e conversa com ela, convencendo-a a não sair dali”. Mas o Facebook anda frequentado só por pessoas meio estranhas, e não da modalidade de estranheza que curte a página da Jojoca. Ela nunca foi criada para ser uma página famosa ou alguma coisa nas linhas da influência digital: ela sempre foi só mais um espaço para escrever abobrinha.
Esse declínio de interesse reflete um pouco do ciclo de vida das plataformas. Lembro que o Orkut, no decorrer do seu abandono, se transformou em um canal de SPAM e propaganda de perfis para maiores de idade. Jonathan Zittrain, em seu livro The Future of the Internet (And How to Stop It), comenta como, no início dos anos 2000, o volume de bad code e lixo virtual que circulava pela rede era tão grande que muitos especialistas acreditavam que seria em breve impossível navegar por sites ou enviar e-mails: estaríamos constantemente na obrigação de desviar de golpes, fraudes, links maliciosos, spywares e vírus de computador.
Lançado em 2008, o livro também descreve como esse problema foi resolvido. Não pelos meios habituais da lei ou pela expectativa de uma educação digital, conscientizando as pessoas sobre os perigos da rede. Tecnologias como a fibra óptica e os navegadores mais robustos acabaram tornando mais fácil simplesmente esconder esses elementos problemáticos. O volume de SPAM não diminuiu, ele apenas não causa mais engarrafamentos no tráfego de dados. Os vírus continuam por aí, mas os computadores e celulares de hoje são máquinas de processamento tão potentes que qualquer contratempo dessa espécie nem ao menos é percebido pelos usuários.
Hoje, o lixo virtual não incomoda por existir. Na verdade, a nós, pessoas conectadas, ele não passa de consequência menor: quem quer estar online vai ter que tolerar um pouco de más-intenções aqui e acolá. O que incomoda é quando elas se tornam insistentes, quando atravessam essa barreira da rapidez tecnológica e nos lembram que estamos em um ambiente governado por robôs e fazendas de click farming.
Há quem diga que o antídoto é diminuir o tempo de Internet, bloquear contas indesejáveis ou seguir apenas alguns perfis seletos, bem-aventurados na sua produção refinada de conteúdo. Mal sabem essas pessoas que não há escapatória: a internet e o mundo real são uma só coisa. Uma piada de Twitter vira print no Instagram, que vira mensagem entre grupos de amigos, que vira link para um vídeo no Whatsapp, que depois chega até o grupo do trabalho e voilà, o coitado do Tio Paulo é o assunto nos corredores da firma. Não há barreiras entre as plataformas, e tampouco entre a tela e a atmosfera do grupo de amigos no bar. Estamos cercados por ele: o conteúdo.
“Produzir conteúdo” é uma expressão tão potente que ela não nos deixa enxergar seu verdadeiro significado. Onde compreendemos de maneira geral aquilo que circula por nossas vidas, em termos de informação, também perdemos de vista o fato da Internet ter homogenizado com sucesso a experiência de estar online. Não interessa se você está lendo artigos no Substack, rolando a tela do Tik Tok, conferindo as novidades das suas assinaturas do OnlyFans ou se atualizando sobre o progresso do conflito no Oriente Médio: por todos esses canais você está fazendo uma só coisa, e essa coisa é consumir conteúdo. Ser um “criador de conteúdo” é como influencers, blogueiros e páginas de memes descrevem o próprio trabalho, mas não porque há um novo ramo de negócios na praça. O problema é que não há como fazer algo, hoje, que não seja convertido em conteúdo. É uma palavra banal, sem profundidade — boa o suficiente para descrever o que estamos fazendo aqui, nesse exato momento: sendo o conteúdo da Internet.
Em um exercício de inversão de lógica, imagine tentar reduzir à ideia de “conteúdo” as coisas que não fazemos online. Ir para uma aula no seu curso da universidade é consumir conteúdo? Fazer uma apresentação para seu chefe é produzir conteúdo? Mandar um depoimento de feliz aniversário para um amigo é uma tarefa de criação de conteúdo? Parece que só faz sentido aplicar essa metáfora quando podemos exercer uma espécie de reificação: o conteúdo precisa existir, ser uma coisa que circula por aí e gera números: curtidas, visualizações, comentários. Ironicamente, o que define o conteúdo não é seu conteúdo, mas os rastros da sua circulação.
Eu ando, infelizmente, escrevendo alguns haikais. Não é culpa minha. Esbarrei em um do Millôr Fernandes (que tem um livro muito bom só com haikais, diga-se de passagem), e achei tão legal que eu não pude pensar em nada além de “talvez a minha vida tenha mudado a partir desse momento”:
Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha.
O haikai é um estilo de poesia japonesa caracterizada sobretudo por sua forma. São três versos, numa sequência de cinco, sete e depois cinco sílabas de novo. Geralmente, versam sobre observações da natureza, contemplações mundanas do cotidiano e retratos dos diálogos internos dos próprios autores. É um exercício introspectivo e bem-humorado de tentar transmitir alguma beleza sobre o mundo que nos cerca de imediato, respeitando a métrica. Gosto muito desse exemplo escrito por Matsuo Bashô, poeta do século XVII:
Penso: as flores caídas
retornam aos seus ramos.
Mas não! São borboletas.
Só porque mencionei sobre a métrica, trouxe dois exemplos que não respeitam muito essa regra. Ler haikais tem disso: eles logo mostram que há uma espécie de “permissão” para infringir as regras se a sua ideia de poema for urgente o suficiente.
A tragédia é que escrever poemas já é difícil para quem costuma ler esse tipo de coisa. Para mim, um ignóbil incapaz de compreender as mais simples estrofes, é quase impossível. Mas haikais são persistentes: eles não servem para informar, para divertir, para distrair. Me parecem coisinhas diferentes, faíscas de insatisfação que se recusam a ser qualquer coisa que mereça atenção — a ser conteúdo.
E foi aí que separei uma página em branco pra ir jogando algumas tentativas de haikai por lá. Escrever, quem sabe, uns 50 ou 60 ou 80 e ver se algum se salva. É divertido, todo mundo deveria tentar. Ir escrevendo, mantendo em segredo e, do nada, um belo dia, interromper um parágrafo em algum texto e soltar um exemplo:
Enquanto a água seca
Entre um fio e outro
O cabeludo também é careca!
Um abraço, Millôr. Obrigado pela inspiração.
Expediente
Eu estava tão faceiro entre dezembro e janeiro: vinha conseguindo manter um ritmo de dois textos por mês aqui no blog e esperava continuar essa empreitada de olho no lucro lá na frente.
A vida, entretanto, reserva surpresas. Iniciei um novo emprego em fevereiro e agora meu tempo livre está tendo que ser inteiramente investido em terminar minha pesquisa de doutorado. Sacrifícios tiveram que ser feitos e um deles foi minha tão arduamente conquistada assiduidade aqui no Substack.
Fico triste pela audiência que fui cultivando nesse tempo, mas prometo que vocês continuam na minha mente. Tenho vários textos na fila para trazer pra cá e, uma hora ou outra, eles aparecerão. Por enquanto, essa diminuição de ritmo é um plano de contingência até eu defender minha tese lá no primeiro semestre de 2025 (se tudo der certo). Apertem os cintos, o piloto não necessariamente sumiu, só está tendo que fazer umas análises de dados e uns relatórios.
Ween é uma banda que gosto demais, mas eles são muito ecléticos. Do country ao metal pesado, fica difícil escolher um álbum pra recomendar pra alguém. Por sorte, algum maluco do YouTube compilou As Mais Tranquilinha do Ween em três volumes, então vou deixar o primeiro aqui como aposta para introduzir a banda a alguém que nunca tinha ouvido nada deles antes. Abraços!
adorei as jojocas! queria tê-las descoberto quando o facebook ainda era um lugar habitável...
Boli, gostei demais da reflexão sobre o que é ~gerar conteúdo e de como ele precisa dos rastros de comunicação para caber nessa expressão. No quadrinho Na Sala dos Espelhos, que fala de redes sociais e a autora diz que a gente virou voyeur de si: observando as próprias ações para levar para uma persona pública. Gostei disso também, lembrei dela agora.
Adorei os haicais do Millôr. Sou fã do Leminski e ele também consegue fazer umas gracinhas com esse formato hehe.
Boa sorte com a geração de conteúdo no trabalho e no doutorado!